CONTO DE QUINTA: Uma história de gatos e ratos

 

UMA HISTÓRIA DE GATOS E RATOS

̶  Verônica! Finalmente resolveu aparecer depois de tanto tempo. Ainda se lembra do caminho de casa? Bem, acho que essa não é mais sua casa.

̶  Quarenta e sete dias.

̶  Você não atendia meus telefonemas…

̶  Não quero falar sobre isso agora. Passei aqui porque preciso pegar umas coisas. Rafael, você tá molhado, pingando. Sai, tenho uma reunião de trabalho daqui a pouco.

̶  Fiquei o dia todo na piscina. A água me faz bem, me purifica. Como estamos longe do mar, tenho de me virar com a piscina mesmo. Ah, eles começaram a reprisar aquela novela que você fez… Queda livre, certo?

̶  Pois é, eu saio logo. Morro afogada por volta do capítulo 50. Foi horrível gravar aquela cena. Ao contrário de você, não tenho essa paixão toda por água. E o Tarantino tá por aí? Saudade dele…

̶  Sei lá. Esse gato anda tão esquisito. Passa o dia todo enfurnado em algum buraco. E deu pra sair por aí. Às vezes, fica dias fora de casa. Comportamento estranho. Será que tá sentindo sua falta? Mas pega logo o que quer e se manda.

̶  Rafael, você voltou a beber?

̶  Voltei, deu pra perceber? Na verdade, nunca parei, minha querida.

̶  A gente devia pensar em vender essa casa. Tem um amigo da minha mãe que é corretor…

̶  Aqui é tão isolado, não é o que você vivia dizendo? O lugar não é valorizado, é tudo longe. Até pra comprar pão é preciso pegar o carro. E o que mais tem por aqui é imóvel vazio. Vamos ser realistas, Verônica.

̶  Sem contrato na TV, sem trabalho no teatro. Tô filmando um curta. O fato é que preciso de grana. Minhas economias vão acabar… E você já arranjou alguma coisa?

̶  Isso não é da sua conta.

̶  Tá namorando? Arrumou alguém? Será que alguma mulher vai entrar por aquela porta a qualquer momento?

̶  Isso também não é da sua conta.

̶  Mas então, a gente precisa vender essa casa. Cada um pega a sua parte, vamos resolver logo essa situação.

̶  Você já viu o sol que está lá fora? Não quero falar de negócios num dia como hoje.

̶  Olha, Rafael, eu…

Verônica se preparava para ir embora quando Tarantino surgiu na janela da sala. Agora tingidos de vermelho, os pelos brancos ao redor da boca do felino conferiam-lhe um aspecto soturno. Eriçando o corpo esguio e produzindo ruídos esganiçados, o bicho aproximou-se de Verônica e atirou aos pés dela o rato morto que trazia na boca.

 

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

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