CONTO DE QUINTA: Instinto

Imagem: Freepik/@Frimages

INSTINTO

Toquei a campainha e aguardei cerca de dois minutos até que viessem atender. A longa espera aumentou meu nervosismo. Sim, num caso desses, dois minutos constituem de fato uma longa espera. Desculpando-se pela demora, Augusto abriu a porta. Eu poderia ter interfonado antes de subir, mas, depois de refletir por alguns instantes, decidi que a atitude mais acertada seria aparecer sem avisar. Melhor que ele ouvisse o que eu tinha a lhe dizer com o espírito desarmado. Educado e protocolar, Augusto me cumprimentou com um aperto de mão. Provavelmente, deve ter estranhado o fato de me ver ali diante dele. Nossa relação se resumia aos bons-dias e boas-noites de praxe proferidos, em nome da civilidade, pelas dependências do prédio quando a casualidade fazia com que nos esbarrássemos. Já sentada no sofá, passei a examinar o ambiente. Atitude espontânea, coisa de mulher, não tive como evitar. A decoração da sala era de muito bom gosto. Nas paredes e em porta-retratos espalhados por vários lugares, fotos do dono da casa ao lado de celebridades – cantores, atores e apresentadores de TV, esportistas e até políticos, pessoas sorridentes e bem-vestidas. Prêmios, diplomas, troféus e medalhas também podiam ser vistos espalhados pelo cômodo. Você foi muito corajoso na entrevista de anteontem, comentei, tentando aparentar naturalidade. A Mariana Gonzalez é mesmo fantástica, consegue extrair revelações incríveis dos convidados. Eu sempre assisto ao programa, sabe? Desde que ela ainda trabalhava naquele outro canal, você se lembra? É curioso, somos vizinhos há tanto tempo, dez anos talvez… Mas todo mundo hoje em dia é tão ocupado… São tantas solicitações, apelos… Enquanto produzia esse discurso meio confuso, bem diferente do texto que havia ensaiado, tentava ler no rosto de Augusto alguma indicação, mesmo vaga, acerca do que ele poderia estar pensando daquilo tudo. E que parte da entrevista mais chamou sua atenção? Sem dúvida, quando você descreveu o acidente. Perder a esposa de uma maneira assim tão violenta… Eu me recordo bem de vocês dois sempre juntos, abraçados, pareciam se amar tanto. Sua vida mudou bastante, claro, não podia ser de outro modo. Parei de falar. Esperava que essa fosse a deixa para que Augusto dissesse algo. Ele apenas me encarou. Sua expressão continuava indecifrável. Após algum tempo, resolveu se aproximar. Acionou uma espécie de manivela situada perto do braço da cadeira, o que imediatamente a fez deslizar macia pela sala. Antes de parar ao meu lado, deu dois ou três giros e andou para frente e para trás tentando demonstrar o quanto era hábil no manejo daquela engenhoca. Por fim, sorriu amistoso. É difícil acreditar que você não faz sexo desde o acidente. Lá se vão cinco anos, não é? Eu tenho uma proposta a lhe fazer. Talvez você ache estranho… Eu mesma acho estranho. Você é um homem bonito, jovem, interessante. Não, não diga nada a menos que considere essa minha ideia um completo absurdo. Eu penso que isso não está certo, você com certeza continua a ter desejos. Não é porque ficou assim… Paraplégico, interrompeu ele. Não tenha medo de pronunciar a palavra. Me ajuda aqui, anda. Me põe no sofá. Obedeci. Augusto era extremamente charmoso. Um tipo italiano, com a pele muito branca, olhos castanhos amendoados, nariz grande e lábios grossos. Após o acidente havia engordado um pouco. Naquele dia, estava com a barba por fazer e usava uma camisa estampada de seda. Senti que ele queria tocar meu corpo. Consenti. A partir daí, nem eu nem ele falamos mais nada. Passamos a agir comandados pelo instinto. Eu me oferecia àquele sujeito quase desconhecido sem culpa alguma. Íamos aprendendo na hora como deveríamos nos comportar. Nossa experiência prévia valia pouco, logo constatamos. Aquilo era uma espécie de rito inaugural, de cerimônia de iniciação, sei lá. No início, mãos indecisas a respeito do rumo a tomar, embaraço. Felizmente, foram apenas três minutos de inépcia seguidos por pelo menos uma hora de destreza. Tudo aconteceu de um jeito suave e tranquilo, mais ou menos como eu havia imaginado. Ajeitando o cabelo e retocando a maquiagem num espelhinho, me preparava para ir embora quando a campainha tocou. Era Carlos, uma espécie de enfermeiro de Augusto, que voltava da rua carregado de sacolas. Esqueci a chave, anunciou meio desconsertado ao constatar minha presença. Não sei onde ando com a cabeça, completou. Notei então que os dois homens trocaram um olhar malicioso. Por um instante, me senti envergonhada. No dia seguinte, acordei com um beijo carinhoso do Marcelo me avisando que o caminhão havia chegado e que os carregadores já estavam subindo. É fato que não conseguiria ter feito o que fiz se não estivéssemos de mudança. Sem dúvida, seria muito desconfortável continuar a encontrar Augusto no elevador, na garagem e na portaria do prédio.

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

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