CONTO DE QUINTA – A menina vestida de Sol

com César Manzolillo

A MENINA VESTIDA DE SOL

 

Dizem por aí que, num ano qualquer do século passado, o carnaval foi completamente atípico no Rio de Janeiro. Bem no fim de fevereiro, apenas uma semana antes da festa, surpreendendo a população inteira, o prefeito da cidade baixou um decreto — com direito a pesadas multas para os infratores — proibindo as pessoas de brincarem fantasiadas nas ruas. A indignação foi geral. Até quem não era folião se revoltou. E a graça da festa? E a tradição? E os turistas, como explicar aos visitantes a situação? Muita gente — os mais prevenidos — já tinha até mesmo a fantasia pronta. O que fazer com ela? Tempo e dinheiro perdidos. Do dia em que a ordem foi dada até o carnaval, não se falou de outro assunto. Apesar da polêmica criada em torno do fato, a lei foi rigorosamente respeitada. Os poucos que tiveram ânimo de sair às ruas durante o reinado de Momo o fizeram desanimados e sem entusiasmo algum. Nem parecia carnaval. Não se via, em nenhum ponto da Cidade Maravilhosa, uma baiana, um índio, um pirata, uma havaiana, um palhaço, um bate-bola. Pierrôs e colombinas, se havia, estavam trancados em casa, longe dos olhos vigilantes dos implacáveis fiscais a serviço da autoridade máxima do município.

A partir da manhã de domingo, contudo, começaram a surgir notícias de que uma menina franzina e lourinha, de uns 10 anos de idade, passou a ser vista aqui, ali e acolá fantasiada de Sol. Sua primeira aparição parece que se deu lá pelas bandas do Largo do Machado, mas logo chegaram informações parecidas vindas da orla de Copacabana e de Ipanema; de Vila Isabel, a terra do incomparável e inesquecível Noel; do subúrbio de Madureira, onde o samba brota fácil e forte em cada esquina, viela ou beco, e de vários pontos do centro da cidade — Cinelândia, Praça Onze, Rio Branco, Presidente Vargas. Segundo os relatos, tinha ela um semblante sereno, tranquilo e caminhava sozinha parecendo flutuar. Sorria com bonomia a todos que encontrava, angariando de imediato a simpatia da população. Naquele ano, nenhum outro evento carnavalesco conseguiu — com perdão do trocadilho — fazer-lhe sombra. A menina vestida de Sol reinou mesmo absoluta.

No entanto, depois que o carnaval passou, as pessoas foram percebendo que o Sol deixou de iluminar os dias, como sempre costumara fazer, altaneiro, durante praticamente o ano inteiro. Era mesmo abençoada a cidade do Rio de Janeiro. Foi então que alguém sugeriu que a tal menina, sumida desde as primeiras horas da Quarta-Feira de Cinzas, poderia ter levado embora o astro rei com ela. O prefeito, desesperado e arrependido, implorava que a garota retornasse, trazendo também o Sol de volta. A campanha ganhou logo a adesão de todo o povo carioca e durou meses. Entretanto, depoimentos confiáveis de pessoas idôneas, informaram que, em setembro, quando a primavera chegou, trazendo consigo as flores esperadas, o panorama ainda era baço e sombrio, o que obrigou rosas, margaridas, dálias, papoulas e até girassóis a enfeitarem ruas, praças, parques e jardins tendo ao fundo um cenário invariável e inoportunamente cinza e esquálido.

Arrependido, o alcaide insensato e incompetente resolveu renunciar, obtendo, de imediato, o apoio dos munícipes. O sucessor assumiu prometendo jamais legislar sobre questões inúteis e desimportantes. É preciso focar a atenção no que realmente interessa, explicou, munido de doses fartas de bom senso e de sabedoria, durante o seu primeiro discurso. Assim, no dia seguinte à posse, inicialmente de forma tímida, como que por milagre, o Sol voltou a reluzir no Rio de Janeiro. Junto com ele algumas nuvens surgiram também no céu. E ele as atravessava, imponente e poderoso, cumprindo com garbo e competência sua função de iluminar e aquecer. Foi precisamente nessa hora que cidadãos mais atentos e observadores puderam jurar que a maior e mais bonita dessas nuvens tinha o contorno exato de uma formosa menina vestida de Sol. Só os mais sensíveis e puros de coração foram capazes de ter essa visão. Por outro lado, o retorno do Sol, há tanto tempo ansiado, não passou despercebido a nenhum habitante da cidade.

 

 

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

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