CONTO DE QUINTA: A despedida

Foto: © Adam121 | Dreamstime.com

 

A DESPEDIDA   

Estranho ver você aí deitado, fisionomia serena. Por que você não era assim a maior parte do tempo, Samuel? Tenho a impressão de que você vai se levantar a qualquer momento e começar a falar aquelas coisas sem sentido que costumava dizer. Você não percebia que seus argumentos eram frágeis, sem coerência? Suas cenas de ciúme bobas. Samuel, aquilo era apenas meu trabalho, era tudo profissional. Sério. Nunca houve nada. Nada mesmo. Olha em volta, não veio quase ninguém. Sua mãe, seu irmão e sua cunhada mal me cumprimentaram. Nem parecem tão tristes. Ficaram surpresos com a minha presença. Não vejo nenhuma senhora Samuel Arantes. Pra falar a verdade, nunca soube se existiu alguma depois de mim. Claro que você deve ter tido seus casinhos por aí. Presta atenção, vou fazer uma coisa. Quero que você leve minha aliança com você. Sim, eu ainda guardo. Poderíamos ter sido felizes juntos, ter construído uma relação sólida. Mas você era imaturo, queria as coisas sempre do seu jeito. Acabou que não tivemos filhos. Não passamos nossa herança adiante, não deixamos na terra nossa semente. Ainda bem, nunca tive vocação pra maternidade. Acho que você também não teria sido um bom pai. Pra onde será que você foi? Tomara que para um bom lugar. Apesar de tudo, você não merece sofrer. Sua alma já está por aí, flutuando no ar, observando as pessoas de modo furtivo, será que já deu tempo pra isso? Samuel, você já sabe que morreu? A gente ouve dizer que muitas pessoas demoram a descobrir. Bem, meu lado espiritual não é tão desenvolvido, não posso falar com propriedade sobre esses assuntos. Pensei que conseguiria refazer minha vida depois da nossa separação. Não foi isso que aconteceu. Mas sempre é tempo, né? Trouxe uma coroa. É a mais bonita de todas. São apenas duas, ainda assim é a mais bonita. Fiz questão de colocar meu nome na faixa pra todo mundo saber. Ainda não tô acreditando. Nem consegui chorar, embora ache que devesse. Não, não, não. Não vou usar técnica de atriz pra isso. Ou acontece espontaneamente ou nada feito. Samuel… Eu te perdoo. Você me perdoa?

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

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