ÀS QUARTAS – Virada

Com Ana Lúcia Gosling

 

Foto: Polina Kuzovkova, em Unsplash

 

Desejei que fosse você na campainha da porta, com um prato de jabuticabas na mão, colhidas no quintal. Lembrando minhas confidências sobre a gula e me fazendo um carinho diferente. Mas era o entregador do mercado; as compras de um lado, a máquina de cobranças do outro. Nem mesmo sorria.

Pensei que estaria na comemoração marcada. A casa enfeitada pros amigos, o cardápio adaptado a suas alergias. Esperei, até a sobremesa, você chegar com as histórias da última semana, a crônica inscrita em concurso, o amigo de faculdade reencontrado na feira. Mas orbitei outras falas, na ausência da sua.

Também não o vi na manhã de sol, na praia vazia. Talvez fugisse de mim, evitasse de contar-me como a solidão fabrica medos e aconselha mal o coração. Se chegasse de surpresa, esconderia a euforia sob a face da naturalidade para que, mesmo arisco, me deixasse ficar. Eu escolheria passos curtos, até um ponto distante, e me sentaria em silêncio, sem assustá-lo, como sempre.

À tarde, bato a sua porta, atraída, de longe, por sua seleção de músicas. Tiro você para dançar. Você gargalha, desajeitado, livre; eu, também, por você gargalhar.

Deixo a porta entreaberta. Alto, o toque do telefone. O de mensagens, vibrante. Não quero que me escape o instante em que me procure. Não posso distrair-me do que vale o risco. Mas perco dias afogada em obrigações. Conserto o vazamento do chuveiro. Durmo tarde, estudando a matéria. Gasto horas em documentários tristes e filmes sentimentais.

Esqueço ser seis horas, já sexta-feira, fim de junho. O tempo que nos separa não é tanto mas é uma vida. Volto a você, como se nunca o tivesse esquecido. Próximos, me reconheço. Vejo em seus olhos os fogos da virada. Seu sentimento também cintila. Dessa vez, você puxa a valsa e me traz ao peito.

Antes de a cascata de luz tocar a areia da praia, estamos entrelaçados: histórias, lábios, coragens. De que teríamos medo se atravessamos o pior? Se aprendemos a curar a ressaca de viver? No fim do beijo, você me prende junto ao corpo. Não escaparei. Não partirá. Deixaremos a roupa à beira das ondas, a alma vestida apenas da pele, o coração exposto em intimidade. Antes de entrarmos no mar, mergulharemos em nós.

 

ANA LUCIA GOSLING

@analugosling

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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