ÀS QUARTAS – Tarde no Palácio

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Fui com amigos visitar o Palácio do Catete.

Na minha primeira visita ao local, há anos, assistira a “O tiro que mudou a História”, peça de Aderbal Freire Filho, protagonizada por Cláudio Marzo. Entrei no Museu da República, à noite, pelos jardins, aguardando ser convidada para adentrar a casa, após a apresentação dos fatos em torno do momento retratado. Encenavam-se as últimas horas de vida de Getúlio Vargas e as ações ocorriam pelos cômodos e corredores do palácio onde, de fato, aconteceram. Na cena final, a do suicídio do presidente, estávamos dentro do quarto com ele, cúmplices e impotentes testemunhas da tragédia.

A referência dessa noite teatral sempre me faz caminhar pelo espaço, em idas posteriores, com uma consciência que abre portas à minha sensibilidade.

Dessa vez, um dos seguranças puxou conversa. Resolveu contar a mim e a minha amiga sobre os sons noturnos e o ambiente assombrado. Confidenciou-nos que, na véspera, uma visitante passara mal no quarto de Getúlio, sem saber, ainda, onde tinha entrado. Na volta para casa, eu procuraria, curiosa, os locais assombrados do Rio de Janeiro. Acharia matérias que apontam de 5 a 28 locais. Em nenhuma achei o Palácio do Catete. Mas o homem garantira que, no primeiro andar, ouvem-se muitos passos sobre o chão de madeira à noite.

A justificativa que ele finge aceitar é a de ser a madeira se dilatando. Não cria polêmica e não se impressiona com fantasmas. Concluiu, com naturalidade: “Não creio ser o Getúlio. Ele já deve estar em paz. Mas houve muita dor nessa casa. Muitos escravos, escondidos, construindo esse jardim. Muito sofrimento”.

Foto da Autora

Havendo ou não fantasmas, ele desce o véu sombrio dos sentimentos sobre minha visão romântica. Os lindos jardins do palácio, enquadrados, num ângulo especial, pela porta da sala de reuniões, se contaminam com o passado de violência e escravidão. Já não bastasse o suicídio de Vargas.

O homem nos mostra, no celular, uma foto da máscara mortuária, feita de cera, com sobrancelhas e cabelos do presidente, que ficava exposta no quarto. Fora retirada por deixar impressionadas algumas pessoas. Impressiono-me. Não por temor mas pela mórbida ideia de moldar-se o rosto de um homem falecido e cobrir-lhe com seu material genético. Por que isso seria homenagem ou reverência? E foi, por anos!

Sinto pena por não haver a mínima privacidade nem na morte. A beleza ao redor se diminui ao imaginar quanta dor se abrigou entre aqueles muros. Ao mesmo tempo, tenho vontade de tocar os relevos das paredes do Salão Mourisco, abrir as gavetas das cômodas de madeira de lei e enebriar-me com os dourados do salão espelhado. A beleza hipnotiza e fascina. No local, adormecem contradições. A rica decoração e um passado manchado por escravidão e morte. Presentes de democratas e ditadores ao lado da sala de oração.

Sorri-se, para fotos, na escada com largos corrimões de madeira, ignorando-se levar ao quarto em que a angústia venceu a esperança de um homem. “Hoje farei uma prece para os espíritos do palácio”, digo ao segurança, em nossa despedida. “Faz, sim, senhora. Precisa”.

ANA LÚCIA GOSLING

@analugosling

DICA DA SEMANA:

Luiz Antonio de Assis Brasil
Foto: Divulgação IEL

O escritor e professor Luiz Antonio de Assis Brasil, ministrante da oficina literária mais tradicional e mais longeva do país, em Porto Alegre, oferecerá uma oficina compacta, “Romance: teoria e prática”, no IEL – Instituto Estação das Letras, no Rio de Janeiro. O objetivo é a elaboração de um projeto de romance até o fim do curso, sob sua orientação.

Luiz Antonio de Assis Brasil é vencedor de vários prêmios, como o Jabuti, o Machado de Assis (da Biblioteca Nacional) e Portugal Telecom, tendo participado da formação de vários escritores nacionais premiados, como Michel Laub, Daniel Galera, Luisa Geisler, Paulo Scott, Cíntia Moscovich, Carol Bensimon.

SERVIÇO

Oficina “Romance – Teoria e Prática”

  • Local: Curso on-line, através da plataforma Zoom, pelo Instituto Estação das Letras.
  • Dias 1, 4, 8, 11, 15 e 18/7/24 (segundas e quintas-feiras) – das 18h às 20h | Carga horária: 12 horas
  • Investimento: 3x R$ 360,00 (no cartão de crédito)
  • Valor promocional ATÉ dia 10/06: 3x R$ 290,00  (no cartão de crédito)
  • Inscrições: pelo e-mail: iel@estacaodasletras.com.br , pelo Tel/Whatsapp: (21) 99127-4088 ou através do formulário na página do IEL: http://estacaodasletras.com.br/

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

2 comments

  • Mais uma instigante, intrigante e misteriosa crônica da Ana Gosling, ou seja, mais um delicioso texto de sua autoria. Parabéns!

  • Aninha, foi um passeio maravilhoso! Não fomos com a intenção da visita mas valeu cada olhar minucioso desde os lustres,.gravuras, pinturas,.adornos e por fim histórias. Rezei pelos que ali perderam a vida e deixaram lágrimas!

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