Às quartas – Reveillon

Foto: Michael Fousert em Unsplash.com

 

– Eu não acredito que você vai assim!

– Não tem nada demais querer amor, paixão. Já me basta esse ano inteiro no caritó.

– Vermelho da cabeça aos pés? Todo mundo vai achar que você está encalhada.

– Dona da minha narrativa. Não escondo que quero viver emoções.

– Sei.

– Vai dizer que você quer paz? Esse branquinho não me engana, não, Bruna. Aposto que sua calcinha é vermelha. Ou amarela, porque você vive dura.

– Pelo menos não fico alardeando pobreza nem carência.

– Melhor não deixar dúvida pra anjo nem orixá nenhum. Tudo bem às claras.

– Tanta desgraça no mundo, o santo vai priorizar sua vida amorosa. Até parece!

– Cada um com sua missão. Meu caso é vida amorosa. Meu anjo da guarda tem que focar nisso.

– Só você, Mariana.

– Vamos logo, já fecharam as ruas. Fica difícil chegar.

– Vou só pegar as sementes de romã pra pôr na sua carteira. Você acha meu vermelhinho bobagem mas coloca as sementes na carteira pra ver se atrai um dinheirinho.

– Eu não disse que era bobagem. Eu disse que era muita bandeira.

– E daí? De repente alguém na praia me acha bonita. Aposto que, de vermelho, vou me destacar na multidão. Todos de branco,,,

– Que praia? A Luísa mora longe da praia.

– Oito blocos só.

– Oito blocos! De salto alto, bêbadas e cansadas da noite. Ida e volta. Estou fora de praia, hein?!

– Mas você é chata! A gente precisa pular as sete ondas!

– Pula outro dia.

– Que outro dia? Tem que ser na virada.

– Bêbada? Você vai levar um caixote! Vai entrar o ano sendo arrastada.

Foto: Guilherme Stecanella em Unsplash.com

– Quem disse que estarei bêbada?

– Mariana, passo Reveillon com você há três anos. Há três anos, você entra o ano bêbada, cantando e se pendurando nas pessoas.

– Eu não sei porque passo o Reveillon com você, sabia? Eu vou à praia. Eu vou pular as sete ondas.

– O táxi chegou. Aperta o botão do elevador, vai. Estou carregando o pernil.

– Pernil é bom. Não cisca pra trás.

– Pernil cisca?

– Não, não cisca. Aves ciscam.

– Não vai me dizer que foi por isso que você escolheu levar pernil.

– Claro! Luísa fará chester. No Reveillon, não pode nada que cisque pra trás.

– Meu Deus!

– O que foi agora?

– A gente podia ter levado uns sanduíches de queijo. Daria menos trabalho.

– Ano novo à base de sanduíche? Por isso que você vive dura, sabia? Porque você pensa pequeno e atrai mesquinharia.

– Abre a porta do táxi, por favor.

– Boa tarde, meu senhor. O endereço está aí no aplicativo. Obrigada.

– No ano que vem, se for pra ter essa trabalheira e fazer essa mandinga toda, acho que nem vou. Estou ficando cansada de passar fora de casa. Nunca tem condução pra volta. Tenho que esperar o dia amanhecer.

– Passar em casa? Sozinha? Ninguém fica sozinho no Reveillon, Bruna!

– Claro que sim! Muita gente fica sozinho no dia 31, eu, hein?!

– Quem passa a virada sozinha, fica o ano sozinha.

– Lá vem você com suas crendices. Você acha que meus cinco irmãos passariam um ano inteiro sem me atazanarem?

– A gente nunca sabe…

– Eu sei! Você acha que nenhum familiar, nenhum amigo, nenhum colega de trabalho me procuraria ou ajudaria, se eu precisasse?

– Ai, que conversa horrorosa. Vibra pensamentos bons. O novo está chegando.

– Você fala umas coisas…

– Deixa eu ter esperança, Bruna.

– Eu deixo você ser assim se você parar de querer que eu faça tudo do seu jeito.

– Está bem.

– Eu não quero pular onda.

– Não pula.

– Eu quero comer chester.

– Come. Fazer o quê?

– Enquanto você vai à praia, vou assistir à tevê.

– Está bem.

– Vai passar Entrevista com o Vampiro à meia-noite.

– Ai, Bruna, pelo amor de Deus! Assiste a uma comédia romântica! É ano novo!

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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