Com Ana Lúcia Gosling

Foto: Divulgação
Decidiu não mais esperar. Calçou os tênis, vestiu camisa. Ainda madrugada, o pão mergulhado no café, ligou o rádio na cozinha.
Cheguei a tempo de te ver acordar (*)
Eu vim correndo à frente do sol
O ímpeto: correr em sua direção, com a ansiedade dos amantes. Tão rápido, como se tentasse, na velocidade da luz transpor os limites do seu corpo físico e alcançá-la antes mesmo do dia.
Numa devoção ingênua e sagrada, era a amada que deseja ver despertar. Não só para o dia mas para o seu amor.
Abri a porta e antes de entrar
Revi a vida inteira
À porta, diante da fronteira entre seu passado e o presente, entrou num outro estado de ser. Sabia fazer, ali, uma escolha: abraçar um sonho, comprometer-se, pensar futuros.
Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois
Único como seu amor, precisariam de um idioma. Secreto. Com lembranças e palavras que só os dois pudessem traduzir, a partir das suas experiências. Com lembranças e palavras só reconhecidas no contexto de sua história, deixando de lado as que servissem às de outras pessoas.
Sinais de bem, desejos vitais
Pequenos fragmentos de luz
Falar da cor dos temporais
De céu azul, das flores de abril
Pensar além do bem e do mal
Na língua íntima dividida, o amor confirmaria seus bons instintos, aflorando desejos, em gozos, descobertas, breves luzes, ideias brilhantes. Como elemento de vida, o amor se manifestaria no etéreo e no corpo.
Comporia os diferentes tons de cores de uma mesma aquarela. Em alguns dias, sóbrios como os dos temporais. Em outros, vibrantes como os de céus limpos. Entre dias serenos e tempos instáveis, o amor os renovaria a juventude, em outonos e primaveras. Transcenderia bem e mal, moral e razão. Seu brotar misterioso fundaria novos mundos.
Lembrar de coisas que ninguém viu
Algumas coisas, só os dois, cúmplices, seriam capazes de ver. Outras, confiariam existir. Por instinto, ligados por uma memória ancestral que os conectara antes de estarem juntos. Como dizia o poeta: “Tu sempre foste una/e sempre foste minha/ainda quando a cor e a forma tua se fundiam/ com outra forma e cor que tu não tinhas./Por isso é que te falo de umas coisas/que não lembras/nem nunca lembrarias/de tais coisas entre mim e ti/ainda quando tu não me sabias” (**).
O amor a oferecer-lhe era antigo, cultivado em outras manhãs.
O mundo lá sempre a rodar
Em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer
O mundo girava a seus pés, sob incessante sucessão de acontecimentos. A roda da vida. Desconectado da repetição sem sentido, da rotina, das amarras sociais, seu amor traria novo sentido à sua existência. Acima de tudo, seu amor imperaria. Dele, brotaria chão pra suas pegadas, estradas pra vida se realizar.
Pensei no tempo e era tempo demais
Você olhou sorrindo pra mim
Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça
Eu simplesmente não consigo parar
Lá fora o dia já clareou
A iminência do encontro. A vertigem amorosa, suspendendo o tempo e o espaço, trazendo conforto à ansiedade pela espera. O tempo da vida, as horas longas se condensando num instante de paz, num sorriso, num beijo.
Ela sorrindo. Ela lhe beijando. O amor desorganizando seus pensamentos, desestruturando seu equilíbrio. Transformando. Revolucionando. E, entre o despertar e o gesto amoroso, o dia clareando ao fundo, chamando-os.
Mas se você quiser transformar
O ribeirão em braço de mar
Você vai ter que encontrar
Aonde nasce a fonte do ser
E perceber meu coração
Bater mais forte só por você
No próprio ser está a origem do sentimento. No quanto há de vontade de transformar as escolhas amorosas em escolhas de vida, rio em mar, pequeno em forma infinita. No olhar para o outro, entender a promessa de parceria em seu coração. Na vontade da aliança. Em optar amar ao reconhecer-se amada.
O mundo lá sempre a rodar
Em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer
Estrada de fazer o sonho acontecer
A vida, cíclica, mantendo-se, em roda, sob seus pés. Acima, os sentimentos inaugurados trazendo rumo à caminhada. O amor, estrada, travessia, portal para uma vida que se inaugura ao nascer do sol.
Desliga o rádio. Dá a mão ao Fado. Ganha o mundo. Bate à porta.

Foto: Divulgação
(Nota da autora: A notícia da morte de Lô Borges me pegou de jeito.
Suas músicas são panos de fundo da vida toda. Passei o dia ouvindo as favoritas do seu repertório. Não sei falar melhor de Lô Borges do que os amigos e artistas têm falado. Mas posso oferecer, em sua homenagem, uma crônica que é, também, uma leitura da letra de uma de suas canções.)
(Citações: (*) Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor (canção de Lô e Márcio Borges), confira a música abaixo;
(**) Poemas para a Amiga, de Affonso Romanno de Sant’Anna)
DICA DA SEMANA:

Foto: Divulgação
No dia 11/11 será o lançamento conjunto dos livros “Os meninos”, de João Paulo Vaz (Editora 7Letras), e “Os verbos estão cansados”, de Alexandre Brandão (Editora Patuá), no Rio de Janeiro.
O lançamento será no Bar Ernesto, na Lapa, a partir das 18 horas, com apresentação Banda Tarumã, que tocará forró.
O Bar Ernesto fica no Largo da Lapa 41, ao lado da Sala Cecília Meirelles
Os livros estão em pré-venda nos sites das editoras @editora7letras e @editorapatua.
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com César Manzolillo














Linda crônica cheia de beleza e poesia. Ana Lúcia tem uma maneira especial de dizer as coisas de forma clara precisa e doce.