– O exercício pedia pra juntar as palavras “tenda” e “sobressaltada”. Foi o que fiz.
– Você não juntou. Você trapaceou.
– Olha como fala!
– Trapaceou, sim. “Ela entrou na tenda. Sobressaltada, escondeu a arma na mala”.
– Um ótimo início, não? Deixa o leitor intrigado. Matou? Quem morreu? Quem é ela? Heroína ou bandida?
– Não era essa a proposta!
– Juntei, não juntei?
– Não! Estão separados! Frases diferentes. Tem até um ponto final no meio.
– Ah, é impossível escrever uma história e usar essa expressão “tenda sobressaltada”.
– Para isso estamos aqui. O autor deve ser criativo. A ideia é essa.
– Mas precisa ter lógica.
– Nem sempre.
– Alguma lógica tem que ter… Não posso sair colando um monte de palavra aleatoriamente, sem sentido.
– Eu não disse isso.
– Tenda sobressaltada? Aff!
– Solta a franga! Liberte-se das amarras.
– “Vi a tenda sobressaltada. Estariam próximos os soldados inimigos? O ar congelou. Até as árvores pareciam temê-los.”
– Aí, tá vendo? Melhorou!
– Horrível isso.
– Trabalha a ideia, então.
– Mais do que já trabalhei? Olha o quanto já escrevi, tentando!
– Todos esses papeis são tentativas?
– Tudo isso. 2, 3 folhas tomadas de frases! 4, 5…
– Até essa partitura intrusa?
– Não, me dá aqui. Esse é meu estudo pra quinta. Cara, ainda tenho mais esta: recital na quinta!
– “Correu até a tenda sobressaltada, onde aguardavam-se as notícias da guerra. O mundo acabara mas eles ainda não sabiam”.
– Você tá brincando, né?
– Se solta, cara!
– Vou voltar pro piano. Mais fácil.
– Só não consegue quem desiste.
– Já sei! “A tenda sobressaltada reagia à música saída do piano. Ernesto parecia saído do umbral. Havia passado os últimos dias lá, juntando palavrinhas. A música o libertou”.
– “Palavrinhas”, não!
– Não ficou melhor?
– Palavrinhas, umbral… Pra que fazer oficina, né? Deixa só o professor ouvir você.
– As suas palavras eram melhores do que as minhas.
– “Odisséia empoeirada”? Você tá de sacanagem!
– Estou dizendo…
– Mas você não me viu reclamar. Estou me esforçando aqui.
– Aprender Mozart é mais simples.
– Fazer arte nunca é simples.
– Conheço gente que escreve simples, sim. Acho bonito.
– Meu amigo, acredite: escrever simples dá um trabalho…
– E eu não sei disso?