Na pandemia, trabalhando isolada em casa, criei vínculos com a natureza como nunca antes. Passei a prestar atenção em detalhes e processos que me escapavam. Foi a parte boa do distanciamento: adquirir o hábito de observar o “nada” e tropeçar em pequenas descobertas.
Recentemente, flagrei um percevejo fêmea colocando seus ovos no vidro da varanda do meu apartamento. Achei empolgante testemunhar o momento exato. Compartilhei a emoção numa rede social, publicando a foto dos ovos: um colar de pérolas verdes.
Uma amiga me corrigiria, depois: eu chamava “besouro” de “percevejo”. Mas besouro, para mim, era outro bicho: arredondado, preto, maior. O percevejo é verde, voa, tem o corpo no formato de uma pipa e exala mau cheiro se o apavorarmos ou esmagarmos. Curiosa sobre o nome, pesquisei e descobri outro termo conhecido: maria-fedida.
Pois bem: ovos de maria-fedida postados, recebi corações e curtidas. Entretanto, dez dias depois, quando, num momento de sorte, fotografei as ninfas recém-saídas dos ovos, o tiro saiu pela culatra: gerei uma pequena onda de repulsa. Associando-as ao percevejo-de-cama, alguns amigos reagiram ao que chamaram romantização do ato. Houve quem postasse foto de Baygon, de brincadeira; houve quem dissesse “é praga!”. Crente do sucesso, com meu flagrante único, tive, na verdade, que acalmar a plateia: era bicho de mato, não era a praga. (Marias-fedidas não se confundem com percevejos-de-cama. Estes, sim, estão no meu rol de insetos-dos-quais-quero-distância-irc).
Logo surgiu quem me relatasse uma batalha contra as pragas em sua casa. Percevejos mordiam as pessoas à noite e obrigaram a família a jogar fora seus colchões porque nem a desinsetização havia sido eficiente em eliminá-los. Filme de terror.
Outra amiga, esotérica, trouxe um significado espiritual ao acontecimento: marias-fedidas são alertas para que cuidemos da nossa “plantação” – família ou trabalho – confiantes, pois o odor afasta o mau. Distraída, sem saber, eu estava sendo convocada para algum tipo de missão.
Meu irmão se entusiamou por eu deixar percevejos nascerem na varanda mas censurou o fato de eu discriminar os morcegos, recolhendo os restos das frutas deixadas, de dia, para os pássaros. Tento justificar-me: já me bastam os rasantes inócuos na varanda à noite. Não posso dar-lhes pouso.
Houve quem me tenha colocado sob suspeita de uso de alguma substância. Afinal, quem se alegraria só por admirar a rotina desses insetos ignorados? Estive à beira de boatos que poderiam afetar minha reputação de careta.
Um amigo me devolveu o chão. Observava, há cerca de 10 anos, a desova dos insetos na parte externa da sua casa e me deu, até, umas dicas. Trocamos figurinhas publicamente em rede social e éramos dois encantados com essa manifestação da natureza. Se me internassem como doida, eu teria a companhia dele.
Os filhotes foram embora, todos, no décimo primeiro dia. O burburinho se encerrou.
Meu amigo, experto no assunto, disse que marias-fedidas procriam perto do lugar onde nasceram. Se outra aparecer para colocar ovos na varanda, não terei como saber se estarei romantizando, de novo, ao imaginá-la uma das ninfas nascidas no último mês.
Mas, sabe, às vezes, não somos nós e, sim, a própria natureza, a enfeitar a realidade, com seus ciclos, seus desabrochares e renasceres. Com a chuva, disfarçando o barro da paisagem. Com o sol, ressaltando o verde da mata. Com limpidez, revelando vida sob as águas.
Na dúvida, não dispensem um colarzinho de pérolas verdes ou qualquer outro fenômeno natural que apareça no seu caminho. Mesmo o mais ingênuo sempre contém uma revelação. Mesmo o mais inusitado atrai boas histórias.
ANA LÚCIA GOSLING