Com Ana Lúcia Gosling
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Foto: Marina Vitale, em Unsplash
Há quem acredite o olhar nos atravessar a emoção mais do que um toque ou um beijo.
Senti isso na vez que um amigo viu uma mulher por quem tinha genuíno interesse. Ela era dessas pessoas que, tão bonitas, parecem inalcançáveis mas escondem, no fundo, o desejo de encontrar abrigo. Por isso, abaixou o rosto, desvelada. Para ele, uma miragem, coberta com o encantamento e a melancolia de quem pensa habitar um mundo distante. Eu, sabendo os corações se avizinharem, enxerguei as camadas entre os gestos tímidos e os sorrisos curtos. Era jovem, romântica, iludida sobre o amor. Sonhei, também, um dia, ser vista assim.
Demorou bastante. Uma juventude inteira, os primeiros namorados, um casamento de anos desfeito até, em um encontro, os olhos de um amigo dizerem mais do que todas as palavras trocadas no dia. “Remarcaremos quando eu souber a resposta”, falou. Mas seu olhar entregou: “Quer sair comigo?” e balbucei “sim”, aceitando o convite não verbalizado.
Nenhuma palavra, no tempo em que estivemos juntos, deixou registro. Apenas a doçura e a incredulidade de nos acompanharmos sem termos planejado. Isso não significou eu ficar ou ele não partir. Se, nas fantasias, a cortina fecha, congelando finais perfeitos, na vida real, o palco alterna luzes, fundos e personagens.
Estava dirigindo e o Spotify me trouxe Dick Farney cantando Tom Jobim. Uma saudade imensa dessa delicadeza no mundo.
Este seu olhar quando encontra o meu
Fala de umas coisas
Que eu não posso acreditar
Doce é sonhar, é pensar que você
Gosta de mim como eu de vocêMas a ilusão quando se desfaz
Dói no coração de quem sonhou
Sonhou demais, ah! se eu pudesse entender
O que dizem os seus olhos
Pensei nos olhos do último homem que amei, pousados em mim, sarando as rejeições vividas, perdido na lembrança. Nos olhos magoados do meu pai; nos amorosos de mamãe, me vestindo de paz. Em tudo que nunca precisei dizer para o outro me compreender. Lembro o olhar do meu filho, criança, denunciando a travessura ou pedindo ajuda contra o medo não declarado. Sorrio, pensando nos olhos de Patrick Dempsey fingindo o amor sentido por Derek, seu personagem em Greys Anatomy, e nas referências culturais populares: olhos de lince, olhos de ressaca, janelas da alma.
Tento domar palavras, pondo-as na tela e passando-lhes a linha de bordado. Surpreendo-me, agora, com o frescor desta descoberta: não há palavra que guarde mais emoção do que a lembrança dos olhares que me abrigaram. Quanta cumplicidade há em enxergar um sentimento refletido, em silêncio. Que abrigo seria melhor do que um olhar de acolhimento?
DICA DA SEMANA:
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Foto: Divulgação
Para quem gosta de crônicas e está em Porto Alegre, um programão: no dia 08 de março, a Oficina Santa Sede comemorará 15 anos de existência com uma programação reunindo cronistas de todos o país.
Criada por Rubem Penz, em 2010, em Porto Alegre, a oficina literária está, também, em Canela, desde 2020, sob o comando de Fernando Gomes, e, atualmente, também, em Araranguá, com Kátia Madruga, e em Garopaba, com Iara Tonidandel.
A programação do sábado se dará assim:
Às 14h30, na Sala O Retrato, uma aula magna conduzida por Eduardo Affonso, escritor e cronista do jornal O Globo (e professor inspirador desta colunista que vos fala).
Às 18h, no Auditório Barbosa Lessa, a mesa “Por dentro do jornalismo cultural”, com Adriana Androvandi, Luís Dill, Roger Lerina e Vitor Diel, mediada por Ana Luiza Rizzo, mestre em Escrita Criativa e cronista da revista Ventanas.
Às 20h, a cantora Ana Cris Bizarro, o violonista Maurício Marques e Rubem Penz estarão à frente do show “Os crônicos Adoniran e Noel”. Após, Rubem Penz e Eduardo Affonso finalizam o dia, debatendo o “Espaço da crônica no novo jornal”, mediados por Patrícia Scherer Bassani, professora do Programa de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Feevale.
Durante o evento, será lançado o livro Santa Sede, 15 anos de crônicas de botequim, uma coletânea com textos inéditos de aproximadamente 60 autores que participaram da oficina desde 2010.
A entrada é franca mas, quem quiser, pode colaborar comprando a coletânea acima ou uma caneca do evento, ajudando, assim, a pagar os custos do encontro. Para mais informações, seguem as páginas da Oficina no Instagram: @oficinasantasede
Imperdível, não?
SERVIÇO:
15 anos da Oficina Santa Sede
Quando: 8 de março, sábado, das 14h30 às 21h
Onde: Espaço Força e Luz (Rua dos Andradas, 1223, 4º andar – Centro Histórico, Porto Alegre/RS)
Inscrições: https://oficinasantasede.com.br/15anos/
ENTRADA FRANCA
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo
Quanta delicadeza no jeito de olhar a vida e o mundo. Aliás, tudo fica melhor quando, ao acordar, lemos um texto repleto de olhares como esse de Ana Lucia Gosling. Que cada um lance o seu olhar para a sua própria existência, com os olhos , ao menos, da leveza e da beleza. Parabéns, pela delícia de conto. TANUSSI CARDOSO