Às Quartas – Noite e Dia

Com Ana Lúcia Gosling

Foto: Kelly Sikkema, em Unsplash

 

A noite não dormiria também, como os pais lhe tentaram convencer, ao obrigá-la a ir para a cama. Apenas escondia o sol sob sua saia e jogava um enorme manto negro sobre o mundo, fazendo os homens acreditarem o dia ter acabado.

Era criança mas sabia: a noite é ardilosa. Precisou aprender a enxergá-la além da escuridão. Enfrentar o silêncio e o mistério que desafiam a paz da madrugada.

Uma nesga na porta do quarto dava passagem à luz da sala àquela hora. Os fachos intermitentes lhe diziam que a tevê trabalhava, revelando aos pais os conteúdos ainda proibidos à menina. Pé ante pé, aproximou-se da porta e, pela fechadura, viu a sala fingir-se de cinema: só a tela cintilando diante da plateia silenciosa.

Voltou para a cama e fixou-se no teto do quarto escuro. A claridade da rua desenhava um retângulo sobre a cama. As árvores e os fios nos postes eram espectros, projetados no centro, e a assombravam. Quando a vizinha apagou as lâmpadas da varanda, o retângulo virou um quadrado. O vento murmurava em tons agudos, os vultos bailavam, parecendo avançarem. Em sua tela, o filme era de terror.

Cobriu-se. Concentrou-se na luminosidade se esgueirando sob sua porta. Riscos escuros a cortaram: os passos dos pais. Recolhiam-se. A presença deles no cômodo ao lado amornou seu quarto. Sentiu-se mais protegida. Permitiu deixar-se hipnotizar pelo movimento das sombras. Baixou as defesas, fechou os olhos e dormiu.

Quando o sol espanou a escuridão, um raio atravessou a persiana, realçando os flocos de poeira no ar. Vê-los girar lentamente a encantou. Levantou-se, atraída pela agitação da manhã, a que assistiu da janela: os carros, as pessoas caminhando, os cachorros trazidos pela coleira. Às claras, tudo era alegria. Miúda, num canto, a lua insistiu em ficar. Para a menina, a prova de a noite não encerrar o dia era sol e lua se conhecerem e se relacionarem muito bem.

Onde esperam as trevas quando o sol se exibe? De tanto pensar, achou explicação. Descansam enquanto o dia impera. No fundo do mar, para subirem à superfície em tempo de a lua deitar-se sobre elas. Nas cavernas, para transformarem a floresta em breu e realçarem os pirilampos. Na cidade…tinha certeza: tentam invadir os quartos. Por isso, mantém-se vigilante até os pais estarem próximos e constrangê-las de vez. São a razão de ela teimar acompanhá-los na sessão do filme até a madrugada. Se já enfrenta desafios tão assustadores, que diferença deveria fazer o fato de ainda ser criança?

 

ANA LUCIA GOSLING

@analugosling

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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