ÀS QUARTAS – Não está fácil não

Com Ana Lúcia Gosling

 

Imagem: criada por AI – site ChatGPT

 

Decidi ter chegado a hora de ler “Cem anos de solidão”. Empolgada, quis comprar, também, “Dom Quixote”, riscando os dois livros da minha lista de “clássico-obrigatório-não-é-possível-ainda-não-ter-sido-lido”.

Garcia Marquez nas mãos, peço ajuda ao vendedor para achar Cervantes. Ele acha edições variando entre sessenta e quase trezentos reais.

– Temos uma pra estudantes, o livro compactado. E outra, de capa dura, com ensaios críticos sobre a obra.

– De um polo a outro, hein? Você não tem, simplesmente, o livro original?

– Temos umas dez edições diferentes de Dom Quixote. Para estudantes, livro de bolso, edição completa com ensaios, história em quadrinhos, outra com gravuras representativas do século 17, uma com posfácios de um psicanalista e uma historiadora. Ah! O box Dom Quixote.

– Box?

– 1300 páginas dedicadas à obra, com o livro incluso.

– 1300? Quantas páginas o original tem?

– Bem menos.

– Olha, quero só o livro. Uma edição normal.

– Desculpe, senhora, original não temos, não.

Desisto. Não é na livraria que encontrarei o livro. Em algum canto virtual, livraria ou sebo, hei de achá-lo na essência, o resultado da pena do escritor, e não os escritos a partir da obra.

Imagem: site melhorde10.com

Páro no mercado antes de ir para casa. Escolho entre as marcas antigas de pão integral. As embalagens, agora, trazem, em destaque, um percentual. Percebo, nas conhecidas, que a fórmula não mudou.

– Senhor, tem pão 100% integral?

– 100% integral não existe, senhora, porque leva vários ingredientes.

– Sempre foi assim? 35% integral, 70% integral?

– Para ser considerado integral, a Anvisa exige só 30%. Qualquer pão que a senhora compre com essa informação, pode ficar tranquila: é integral.

– É minoritariamente integral, o senhor quer dizer. 30, 35% é só um terço integral!

– Como?

– Deixa pra lá…

– Este aqui é 100%, olha.

– 100% nutrição. 30% integral.

– Ah…

Volto revoltada por ter desperdiçado milhares de miolos de pão francês, quentinhos, ao longo da vida, por não serem integrais. A ilusão de que poupá-los me ajudaria a ter saúde ou emagrecer. A tonta aqui se achava esperta, enganada há anos. Pode não ter diferença, ser ignorância minha. Mas o sacrifício não me traz mais compensação. Não sei se odeio a Anvisa ou se fico-lhe grata pela perda da inocência.

À tarde, arrumo a mala de viagem. Suspenderei o tempo para viver dias calmos. Mas a amiga me adverte.

– Compra uma bolsa pra carregar seu notebook, viu?

– Pra que outra bolsa?

– Não é garantido embarcar com a mala de mão.

– Como não? Temos direito a uma.

– Temos. Mas não temos.

– Sempre houve uma mala por passageiro.

– Agora não há mais. Não sei por quê. Se os aviões diminuíram ou passaram a vender espaço… Se estiver no grupo obrigado a despachar, ferrou.

– Podem me obrigar?

– Tá no contrato da passagem.

– Vejo gente passando com dois volumes, às vezes. Por que não barram esses, com excedente?

– Vai criar treta na hora de embarcar? Evita, amiga. Compra a bolsa pro notebook.

Compro a bolsa para o notebook. O pão integral de sempre, com a sensação de ser 65% enganada há anos. Compro Dom Quixote pela internet.

Entra ano, sai ano, não está ficando mais fácil entender, não.

 

ANA LÚCIA GOSLING

@analugosling

 

 

 

DICA DA SEMANA:

Andre Stangl. Foto: Divulgação IEL

A grade de cursos da programação de férias do Instituto Estação das Letras, sempre interessante, está especial em janeiro de 2025. Entre os muitos cursos e workshops oferecidos, mestres maravilhosos como a própria Suzana Vargas (fundadora do IEL), Luiz Antonio de Assis Brasil, Márcia Tiburi, José Castello e Hena Lemgruber, Frei Betto, entre outros. São muitas e ótimas opções de oficina de leitura e de escrita em diferentes gêneros.

Destaco, contudo, o curso de Andre Stangl: “Coescrita com Inteligência Artificial“, pelo novo desafio enfrentado em sociedade e, amiudemente, pelos escritores de todas as áreas. Em sua descrição, o curso “oferece uma introdução abrangente à coescrita com máquinas inteligentes, explorando tanto os fundamentos teóricos quanto as práticas contemporâneas. Abordaremos como a inteligência artificial (IA) pode ser utilizada como uma ferramenta criativa na literatura, incluindo estudos das principais teorias sobre a relação entre a criação artística e a tecnologia. Os participantes terão a oportunidade de desenvolver suas próprias obras em colaboração com IA, aplicando técnicas aprendidas durante o curso.”

André é é filósofo, pesquisador e educador digital, com foco em cultura digital e inteligência artificial, trabalhando nesse foco há mais de 20 anos.

 

 

SERVIÇO:

Coescrita com Inteligência Artificial

 

Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:


com Ana Lúcia Gosling

com César Manzolillo


com Tanussi Cardoso

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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