Às quartas – Milton e seu tom genial

Milton Nascimento em ensaio para a turnê “A Última Sessão de Música”. Foto: Marcos Hermes

Não choro fácil. Mas, assistindo à “Última Sessão de Música”, desidratei. Do início ao fim da apresentação de despedida de Milton Nascimento, me emocionei. Em “Maria, Maria”, escorreu a emoção de uma vida: a despedida de Milton, a energia da sua música, a minha ancestralidade, a minha força revelada sob mantos de incertezas, a tal mania de ter esperança e fé na vida.

Tudo foi delicadeza e amor. A dedicação do show a Gal, na abertura. A declaração a Elis. O grito surpresa a Fernando Brant, nos engasgando: “onde você estiver, eu te amo!”. As saudades de Milton são reconhecíveis, são nossas também.

“Eu já estou com o pé nessa estrada, qualquer dia a gente se vê”.

Estamos juntos, palco e plateia, nessa marcha, buscando parear almas. A realidade nos revela que o homem envelheceu. Ele está sentado, o tempo é de descanso e de apreciação do legado. Mas a finitude do homem não atinge o artista. Ele continua a atravessar nossa vida, cúmplice nosso há anos. Seguimos impactados por seus versos e harmonias. A voz poderosa, única, encorpada de Milton dá sinais de cansaço mas é reconhecível, bonita e firma-se na noite.

Canto com ele. A música é nossa religião. Estamos em oração. Comungamos.

Foto da autora

Na plateia, cartazes de agradecimento. Gritos de adoração. O palco vira uma espécie de altar onde um deus humano, senhor da voz e de canções pungentes à alma, acolhe discreta e emocionadamente as manifestações de amor, sem dever milagres. Sua arte já fez por nós.

Zé Ibarra descansa Milton em alguns momentos, assumindo a difícil tarefa de resvalar sua voz em terreno sagrado. Os amigos do Clube da Esquina entram no palco e vira festa de família. Samuel Rosa chega como qualquer um de nós: “Obrigado! Sua música transforma as pessoas e o país”.

Sim, sua música me transformou. Olhei meus vazios (“minha casa não é minha/nem é meu esse lugar”). Cavalguei a potência dos seus versos em direção a minha força (“agora não pergunto mais aonde vai a estrada/agora não espero mais aquela madrugada/vai ser, vai ser, vai ter que ser faca amolada”). Renovei esperanças (“e me fala de coisas bonitas que eu acredito/que não deixarão de existir”). Milton é desses que levamos conosco, sem nos darmos conta. Revisto paisagens com versos de Milton. Há silêncios em mim, cobertos com sua voz.

Foto da autora

A despedida foi inesquecível – repertório e interpretações. No “bis”, sabíamos, seriam os últimos timbres da última festa em público. Abraçado ao filho e a um amigo, Milton é sustentado e fica de pé, diante da plateia que o ama; diante do legado que nos deixará. Milton de pé, sorriso aberto, deveres cumpridos, sonhando horizontes, cartazes coloridos ao fundo… é o que fica. Mistura dor e alegria. Ensina: é preciso ter força, raça, sonho. Sempre!

Assisto ao show pela tevê. Na sala, despeja-se a energia do Mineirão. A música domina o ambiente. Vibram as caixas de som. Vibram, em mim, os acordes finais. A voz de Milton ocupa todos os cantos, seu rosto está bem próximo. Não me escapam suas emoções nessa despedida. No fim da transmissão, a calmaria não se instala. Já sinto saudades. Muitas. Limpo as lágrimas que caem, agora, em silêncio.

Obrigada, Milton, por essa convivência onde coube tanto.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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