Às Quartas – Mães

Com Ana Lúcia Gosling

Imagem criada por IA – Chat GPT

 

Uma tabela para os medicamentos prescritos. Seu número de telefone à cabeceira, para ser consultada quando algo ferisse a rotina materna. O número do médico ao lado, no caso de não ser logo encontrada. As compras arrumadas nos armários: comidas, suplementos, fraldas, óleo mineral, sabonete líquido e talco… Ah, a mãe amava talco, dizia refrescá-la, depositava um perfume inocente na pele.

Mantinha sob controle seus encargos, como boa filha. A fralda trocada. Um beijo na testa. A meia-luz garantindo à cuidadora ver, de pouca distância, a paciente acordada ou descoberta. Era preciso proteger seus pulmões e garantir-lhe um sono reparador.

Deitou-se. Compras. Remédios. Talco. Pulmões. Um silêncio cortante. A luz… a deixou acesa? As necessidades da doente atropelavam sua rotina pessoal. Organizava-se, mentalmente, nessa hora. Os prazos por expirar, a auditoria na semana próxima, a agenda da outra: exames, consulta médica, fisioterapia. Tudo suspenso, sobre a cama, no primeiro instante de repouso. Pronto para desabar. Inspirou profundamente e pôs as mãos no peito, pedindo ao Universo mais tempo, mais paciência. Meditando, dormiu.

O choro alto rasgou seu sono. Levantou-se, bêbada, com o coração pulsando urgência. Tombo? Só lhe faltava um osso quebrado! Dor? Que analgésico se pode misturar aos remédios diários? Acordaria o médico de madrugada, por medo de ministrar uma simples Dipirona? Uma vida humana sob sua conta e risco. Tão frágil essa equação diária.

Sentada à cama, a cuidadora alisava a mão da paciente, em pranto. Implorava voltar para casa. Chamava os pais. Apesar da angústia, vê-la em segurança colou seus pés no chão.

– Mãe, seus pais não estão aqui. Mas eu estou!

Houve estranheza no olhar da mãe. A testa franziu. A mente a analisou, buscando, longe na memória, seu rosto.

– Você é da família? Não me lembro…

O desamparo da mulher, no meio da noite, naquela casa estranha, onde morava a vida inteira. Seu nervosismo impedindo identificar a filha que amava há décadas. O corpo preso ao catre, achando uma forma de entregar-se em confiança. Diante de seu espírito perdido, a filha se amaternou.

Deixou as vestes da obrigação no chão. Voltou o ambiente à penumbra. Aninhou-se na cama, ao lado da mulher. Fez-lhe cafuné. Sentiu seu corpo trêmulo ir-se aquietando.

– É família mas não lembro…

Amaternar-se, gesto instintivo. Deu-lhe a outra mão. Puxou a coberta para aquecê-la. Alojou-se em seu ombro. Esperou silenciar. Entoou, baixinho, uma cantiga de ninar, que a mãe reconheceu.

– Ah, é você, mamãe? Está na hora de irmos?

– Amanhã, meu amor. Amanhã.

 

ANA LUCIA GOSLING

@analugosling

 

 

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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