Compartilharam comigo o artigo do Helio Schwartsman, escrito há umas semanas para a Folha de São Paulo: “Quem pode interpretar quem?”. Nele, questionava-se uma possível tendência global de imporem-se exigências específicas para se interpretarem personagens no teatro. Mal resumindo, algo como “só gays poderiam encenar personagens gays” e situações semelhantes, na percepção de alguns produtores. O colunista defendia que restringir o leque de escolhas, a não ser que exista um propósito artístico nisso, negaria a própria essência da interpretação.
Na sequência dos dias, saiu uma nota sobre a reexibição dos programas do Jô Soares no GNT, que passariam, antes, por uma seleção que o protegesse de um eventual cancelamento virtual. Lembro como, no mundo todo, humoristas consagrados estão se queixando do patrulhamento em torno do humor. Vivem postos à prova por tocarem em pontos considerados sensíveis por alguns grupos de representatividade social. Gente que não sabe que o humor pode ser homenagem mas, normalmente, é soda cáustica. Rir de algo é, em última essência, sugar a força do que nos aterroriza. Nem sempre o ridículo é humilhante, muitas vezes é empoderador, cria espaço, dá voz, naturaliza.
Querer apagar as marcas sociais do passado tem sido prática comum em alguns nichos, esquecendo-se que a formação do pensamento contemporâneo passa pelo aprendizado, ao longo da história. A alteração do nosso olhar em relação a questões hoje condenadas e antes normalizadas se formou nessa caminhada, cujas pegadas alguns acham que deveriam ser apagadas. Apontá-los criticamente, mais do que apagá-los, me parece ser o meio mais eficaz de garantir-se que não se repitam os erros.
Tenho me incomodado bastante com essa aura censora que percorre a sociedade e, mais especificamente, o ambiente das artes. Talvez seja ranço de menina crescida nos anos 70, quando havia censura instituída pelo Governo que, embora tivesse a capa de ação protetora, era um cala-boca, muitas vezes aleatório e ignorante.
Será que o medo de dar asas à intolerância que nos circula nos arrisca a perpetuarmos, na outra margem, o gesto repressor. Ao invés de um equilíbrio, tendemos a virar as discussões para o extremo oposto? Devemos questionar-nos constantemente sobre isso, nessa época em que nossas paixões estão à flor da pele.
Não há dúvida de que há temáticas difíceis de serem abordadas. Mas é preciso cuidado para não nos restringirmos a uma argumentação segmentada. Assim, estaríamos apenas trocando a postura e o discurso discriminatório. E não há radicalismo bom.
A liberdade criativa dos artistas envolvidos – sejam atores, autores ou produtores – me parece essencial para a arte cumprir seu papel desafiador. Se as escolhas forem ruins e o tiro sair pela culatra, haverá o espaço para a crítica e para o debate.
Conferir ao corpo do artista a amplidão necessária é ferramenta revolucionária e inovadora. Uma mulher interpretando um homem ou um gay representando um heterossexual reacionário pode ser um desafio engrandecedor, tanto para o artista como para o público, e pode trazer reflexões melhores do que a escolha mais lógica. Tudo depende do contexto e do desenvolvimento do trabalho artístico. O que se defende é a liberdade de realizar escolhas, sem temer-se eventual patrulhamento.
A arte é o espaço da flexibilidade de pensamento. Temos tão poucos cantos para respirar. Se sectarismos sufocarem o espaço artístico onde serão travados os debates, como nascerão as mudanças reais? Onde o pensamento encontrará a abertura necessária para a evolução social?
A arte é o espaço do simulacro. Autores que contam histórias que não são suas, atores que interpretam vidas ficcionais. Lembro de ter assistido, recentemente, a “Ponto a Ponto”, em que Luiz Fernando Guimarães interpreta uma senhora de 90 anos. No filme “Meu Pai”, Anthony Hopkins, lúcido, interpretou visceralmente um idoso com Mal de Alzheimer. Os atores de meia-idade da série Chaves interpretaram crianças por anos. No que difeririam essas escolhas, se a atuação é, em rasa essência, fingir ser outra pessoa, convencendo-nos ser, de fato, quem se finge ser?
Como professora, aprendi que, muitas vezes, uma pergunta pode parecer simplória, nascida de um desconhecimento total, e, ainda assim, levar a discussão a lugares bem interessantes. Ao acolhê-la, através do diálogo, percebe-se que a origem da dúvida traz uma questão mais relevante do que aparentava no início. Levei isso para a vida: saber de onde parte a angústia do outro é necessário para entendê-lo e, até mesmo, para convencê-lo. Diálogo é o combustível. Convencimento não se conquista à força. Obediência, talvez.
ANA LÚCIA GOSLING
Eu não conhecia esse seu texto. Você acertou em cheio! Parabéns!