Às Quartas – Lar Doce Lar

Foto: Rod Long, em Unsplash

Lar Doce Lar

 

Augusto se entusiasmou com o telefonema do homem procurando um lar para sua família. A casa herdada da avó parecia ser na medida para o comprador: três quartos, um quintal com churrasqueira, um muro protegendo o futebol dos meninos.

Chegou antes do horário marcado para cobrir os móveis: uma cama embutida no quarto e, também, um armário, guardando os últimos objetos. Ao pegar os lençóis na prateleira do armário, puxou o posto de gasolina de três andares que, menino, ganhou da avó. O posto estava escondido no fundo, em um saco negro, atrás de travesseiros amarelados. As rampas entre os andares um pouco tortas. Os carros de plástico adesivados de labaredas. Dois bonecos para serem postos ao lado do lava-jato e da bomba de gasolina.

Seus olhos empoçaram saudades. Espalhou as peças no chão: a pista, os bonecos, as rampas. A avó guardara o brinquedo para passá-lo ao bisneto. Seu filho com Marília, junto a quem Augusto seria menino de novo. Havia arrumado o posto sobre a cômoda do quarto do bebê, no terceiro mês de gravidez da mulher, quando souberam que um menino estaria a caminho.

Não tiveram sorte. A gravidez não chegou ao fim. Devolveu o brinquedo à avó, tirando de casa a lembrança da perda. Não conseguiram mais engravidar. E a mulher não aceitou a ideia da adoção. Queria gerar o próprio filho. Os tratamentos dela e os fracassos minaram a relação do casal. Augusto, sem experiência de confortar; Marília, sem saber isentar-se de culpas.

A angústia se quebrou quando o comprador tocou a campainha, com os filhos pela mão. Enquanto a esposa estacionava o carro, as crianças se espalharam pelo quintal e o homem media o pulo em direção à vida sonhada. “Quanto é o IPTU? A vizinhança é barulhenta?” Augusto enfeitava respostas, apontando a boa divisão dos cômodos.

A correria das crianças para dentro da casa anunciou a entrada da esposa. Era Marília. Augusto estava diante da nova família de Marília. O marido e os gêmeos testavam o som de madeira do assoalho, indiferentes ao breve desconforto entre o ex-casal. Marília apresentou Augusto ao marido. Desfeito o constrangimento num aperto de mãos, o homem continuou a perguntar coisas de ordem prática.

No chão do quarto, os meninos descobriram o posto arrumado. Montaram as rampas. Fizeram o som dos bonecos e do motores dos carros. A mãe se ajoelhou ao lado deles. “Não acredito! Você guardou?”. Marília passou os dedos pelas peças, imaginando doces os contornos do passado. Augusto viu seu sonho vivo num futuro que o exilou. Na venda da casa, deixou para os filhos de Marília o brinquedo que seu filho não tocou.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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