
Com Ana Lúcia Gosling

Foto: Sefa Murat Ozdemir, em Unsplash
Queria escrever sobre o que não deveria confessar a você. Nada grave, nenhum crime ou pecado mortal. Apenas o desconforto e a incerteza desajustando o equilíbrio, pesando no peito. O passo largo a me fazer pensar ser ridículo ter desejado o inalcançável.
Perdoa-me. É coisa de quem não acha nada inalcançável. Não nega possibilidades, não teme discordâncias. De quem aprendeu a dialogar na diferença, amando concordantes e dissonantes, às vezes, mais. Um olhar meio infantil sem enxergar muro ou portão, linha que não se pode cruzar, campo minado ou fronteira, achando poder pisar todo chão pelo qual avança.
Ter alegria menina custa salgado para quem, na vida, é contida nos gestos. Transforma o movimento corajoso em violação de limite, a alegria em chacota, e submete à autocrítica até mesmo tossir, respirar, encarar-se diante do espelho.
Dei a você, sem me pedir, parte do meu tempo. Deixei-o ocupar pensamentos. Banhei meu olhar em admiração. Sorri das suas observações. Envolvi seu corpo num abraço e coube ali, também, toda a sua pessoa: a pele cansada, os cabelos grisalhos, o sono na hora avançada e o medo de ficar. E, naquele momento, parecemos iguais. Felizes e solitários na mesma medida. Contentes e insatisfeitos com as mesmas coisas.
Bastou amanhecer para a casa esvaziar-se. Janelas fechadas, silêncio, campainha sem resposta. Volto ao lugar que me pertence sem mais pertencer a ele. Modificada pela expectativa, silenciada pelo desinteresse. Cruzando os braços, sem saber onde pôr as mãos. Baixando o tom para não incomodar mas deslizando, vez ou outra, numa insistência impertinente, desculpando-me por conservar alguma esperança.
Aquieto-a, para nosso conforto. Mas visto a lingerie delicada sob a roupa do dia a dia. Hidrato os lábios com um batom vermelho. Afofo os seios e os cabelos. Cubro o corpo com a roupa das rotinas. Estou desperta. Contida, ocupo o canto da sala. Se você vier, abrirei a porta. Se ninguém bater, estarei segura.
Na casa onde moro, as janelas ficam fechadas. Há muito, me basta o sol passando pelas venezianas de madeira. Não há perigo de o frio entrar. Apagarei as luzes, girarei o trinco na porta. Dobrarei e engavetarei os sentimentos vãos. Pendurarei as risadas no armário. E dormirei, tranquila, até um amor chegar.


Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo














Que texto mais lindo, poético, comovente! Ana, você escreve muito! Obrigado por essas quartas.. Parabéns!
Ah que mensagem linda! Obrigada, Tanussi, pelo carinho e incentivo.
Amei, Ana! Parabéns! Me senti dentro do seu poema.
Que bom que gostou, Vivi! Obrigada pelo feedback! Bjks.