
Com Ana Lúcia Gosling

Foto: Amir Hosseini, em Unsplash
Achava o grande ruído na comunicação entre pais e filhos ser o fato de pertencerem a épocas com costumes sociais diferentes. Estava enganada. O ruído está nas línguas diferentes e contemporâneas que falamos. Sem dicionários ou traduções simultâneas.
De repente, me descobri numa relação desigual. Meu filho fluente no meu idioma e eu, precisando desenvolver mais vocabulário. Foi um choque saber-me imersa na literalidade do pensamento.
“Suave”, ele me consolaria, sem eu entender onde está a suavidade da minha confissão. No choque, na descoberta, no pensamento? Só depois saberia que “suave” é algo como “tudo bem, mãe, não precisa se preocupar com isso”. Frase inteira cabendo numa palavrinha inusitada. “Suave” tem até sinônimo: “tranquilo”. “Esqueci de trazer o jantar e não tem nada na geladeira”. Resposta: “tranquilo”.
As novidades do dia, às vezes, me pegam desprevenidas. “Eu e meus amigos ficamos nos gastando”. Temi os abusos ocultos nessa oração. Gastaram todo dinheiro em quê? Havia risco de abuso físico nesse “gastar”? Gasta ficou a minha imagem de mãe compreensiva e descolada ao descobrir o significado da expressão: “zoar”, “fazer brincadeira”, “sacanear o outro”. Quem não sabe Português sou eu.
Tentei ser moderna. Elogiei a beleza “sinistra” de algo. “Ninguém mais fala sinistro. Agora é ‘da hora’, mãe”. Acho bom. Será que, finalmente, entenderam “sinistro” ser algo assustador ou obscuro? E “irado” ser furioso? Me perguntava por que as coisas incríveis tinham conotação tão sombrias: se não eram obscuras, eram raivosas. De onde vinha a rebeldia sem causa dessa geração? “Não é raiva, é empolgação”. Ah…tá.
Ele sai de casa anunciando ter uma “parada” para fazer. Não é militar nem motorista de ônibus, então me esforcei: uma festa, um evento? Aprendo: “parada” é uma coisa, quando não se precisa nomear que coisa é. E eu achando que “coisa” já substituía todos os substantivos existentes. Mas ainda é preciso muito feijão com arroz para “parada” adquirir a mesma importância para os desmemoriados temporários. O verbo “parar” nem chega aos pés de “coisar”, substituto de todos os verbos da língua.
Meu filho se diverte com minha simplicidade, ri das gírias antigas, me dá um beijo. Declaro a ele meu amor. “Valeu, mãe!”, me diz, quando me agradece a atenção ou o favor. “Valeu” é reconhecimento mas não cria vínculo. Esse menino está muito solto. Quero que se sinta obrigado a ser bom para mim como sou boa para ele. Muitos anos de terapia, não aceito amor de mão única, nem de filho.
Grito, da porta, envergonhando-o na frente dos vizinhos: “Eu mereço mais do que um valeu! É ‘muito obrigado’, viu? Obrigadíssimo!” Ele nem vira a cabeça. Não sei de onde essa geração tirou que não é obrigada a nada.


Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo
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Mais uma crônica estupenda dessa mágica escritora. Quanta sabedoria, quanta ironia, humor, afeto em sua narrativa. Só posso agradecer dizendo, de maneira muito contemporânea: “valeu”, minha cronista preferida!
Obrigada, Tanussi, querido. Felicíssima por você ter gostado.