Vinte minutos para o jogo começar. As bebidas geladas, os petiscos preparados, os amigos instalados no sofá, o som das cornetas na vizinhança.
O improvável acontece: o sinal da tevê a cabo cai. Atualizo o decodificador. Desligo o aparelho, espero 20 segundos, religo. Nada. Checo os outros pontos de tevê. Todos fora do ar. Tento o atendimento por telefone. Não há viva alma para aplacar minha aflição: uma sequência de gravações, com voz contrastantemente alegre, me dá várias opções. Não quero melhorar meu plano, nem fazer assinatura. Se alguém me atendesse, pouparíamos meu tempo e minha saúde. Ouço a propaganda de venda, clico 2, depois 3, depois 3 de novo. Se fosse cardíaca, enfartava.
Não sei o que mais enerva: ficar presa ao menu desinteressante ou ouvir a simulação do som de digitação num teclado; a gravação fingindo ser gente e não máquina a falar conosco. “Alôô, sei que você não digita, meu amor”, urro, deixando bem claro que não sou idiota. Para quem?
Falta pouco. Ouço fogos. A seleção entrou em campo para treinar, penso. Os amigos ficam ansiosos, acabam com os chips de batatas. Estudam-se alternativas para não perdermos o jogo. Para onde se pode ir há 10 minutos do início da partida?
O sistema faz uma atualização. A gravação me pergunta se resolveu, digito o número do “não”. A voz consternada diz nada poder fazer por mim. Sugere o agendamento de uma visita técnica, pelo “app”. Desligo o telefone, constrangida e histérica.
Alguém lembra que a tevê da sala é uma “Smart TV” e possui um cardápio de “streamings”. Um de nós tem a assinatura do canal que transmitirá a partida. Alívio. Alcançamos a seleção cantando o hino nacional.
O jogo corre e ouvimos uns gritos fora de hora durante a partida. Até as torcidas explodirem no entorno. Um homem grita na varanda: “Brasiiiiiil!”. Para nós, a bola está no campo adversário. Tristes, constatamos: nossa transmissão tem atraso. Minutos depois, na nossa tela, a seleção marca o primeiro gol. Comemoramos, frustrados com o “spoiler” da emoção.
Não se pode lançar mandinga nem oração nas disputas e chutes a gol, para ajudar à seleção. O atraso do sinal torna a reza intempestiva. Num ato de desespero, o amigo sai pela casa, ligando e desligando os decodificadores dos outros pontos de tevê, com esperança de, em algum, funcionar a transmissão por cabo. Grita do quarto: “Tempo real, galera! Tempo real”. Corremos para lá, nos esprememos sobre a cama. Nessa transição, perdemos dois minutos de jogo. Mas chegamos em tempo de ver Richarlison marcar o segundo gol em tempo real. Um gol lindo, de voleio. Explodimos em harmonia com toda a rua. Gritamos pela janela na hora certa.
Os amigos aquecem o coração com a câmera lenta, na reprise. Vou para a sala, religo o “streaming”. Volto dois minutos no tempo. Sei do gol antes de ele acontecer. Olho, atenta, os desenhos que o formaram, em dois, três chutes anteriores. Richarlison chuta a bola no ar. Veloz e bailarino. Quisera poder manter-me em círculos nessa imagem. Esse momento foi lindo demais!
ANA LÚCIA GOSLING