Às quartas – Doce com salgado

Foto: Novo Rio Padaria Contemporânea

 

Pão doce colegial com presunto. Adoro. Era a esquisitice que levava na lancheira da escola. Salgado com doce. Presunto com creme. Tudo destoando. Minha mãe dizia: “comida de grávida”. Eu era criança. Criança não pensa assim. Combina pipoca com leite condensado. Estrogonofe com feijão. Come a salada verde misturada com arroz e feijão para tornar suportável o gosto da folha.

Quando me apaixonei, ele também gostava dessa mesma mistura. Ríamos ao pedir a combinação no balcão da padaria, sob o olhar de estranheza do atendente. Apaixonados riem por qualquer coisa. Lembrávamos as nossas histórias de criança. Na sua família, lombrigas imaginárias levavam a culpa pela excentricidade do seu paladar. Como se adultos não combinassem arroz com passas ou carne com pêssego em calda. Estes, sim, no universo infantil, arranjos sem sentido algum.

O primeiro lanche, juntos, no nosso apartamento ainda vazio, foi pão doce colegial com presunto e coca-cola gelada. Sentamos no chão da sala, imundos, depois de limparmos os cômodos empoeirados pela obra. Exaustos e felizes. Casávamos no dia seguinte. As mãos meladas de creme, o paladar equilibrado entre o sal e o açúcar. Com os pés embaralhados, recostados na parede, combinamos várias coisas: o lanche escolar do filho futuro, o menu das ceias de Natal enquanto a avó Getúlia fosse viva; um plano para atrair investidores para um negócio divertido: uma confeitaria com cardápio de pães elaborados por crianças. 

Havia pouco no início da nossa vida em comum. Fizemos uma obra, tínhamos uma cama, montamos a cozinha. Nos meses seguintes, fomos comprando os móveis da casa. Mantivemos o hábito de tomar o café da manhã sentados no chão da sala nos fins de semana, como naquela noite. Amanhecidos e preguiçosos, traçávamos projetos sem ambição: escovar os dentes, ver um filme na TV, comprar um frango na padaria, rezar para o domingo passar lentamente. Encostávamos os ombros, apoiados um no outro, com os olhos na direção da rua, entre os goles de café.

Foto: Danilo Rios, em Unsplash

Montamos a casa do nosso desejo: os objetos e tecidos certos sobre os móveis idealizados. Mas alguns sonhos não se realizaram. Livros se empilham no lugar reservado para o berço da criança. O casamento se aperta num 13×18 sobre a estante. Sentamos na mesa nova da varanda para o café nos fins de semana. Um de frente para o outro. Café, ovos e pão integral. A amplitude do horizonte diante de nós. Sinto falta do pão doce desde que cortamos o açúcar. 

 

(Este texto foi originalmente publicado na página da Oficina Literária Eduardo Affonso )

 

 

 

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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