Às quartas – (des)encontro

Ele disse que ela era linda. Sabe quando se quer acreditar? Poucas vezes na vida se sentira bonita. Linda então… Beijaram-se no estacionamento, em frente ao restaurante. O flanelinha queria cobrar o trocado que não tinham quando chegaram. Ele pagou.

Ela o deixaria em casa. Ele lhe deu outro beijo. O carro atrás piscou os faróis, pretendendo entrar na garagem. Ele a convidou mas ela precisava voltar, apanhar a menina que ficara com o pai. Saboreou em silêncio estar diante do ex com a boca e os cabelos tocados por outro homem. O rosto alto, sem culpa de ser feliz.

A agitação da criança acelerou a despedida. Guiou para casa repassando as frases do encontro na cabeça. A filha cantava a música do rádio, em inglês, acertando as frases. Seis anos de idade e entende o que se diz? Ela sorriu à menina pelo retrovisor.

Tinha trocado de vestido três vezes antes de sair de casa. Alinhou as mangas com o colo e as saboneteiras. Os ombros nus a fizeram sentir-se sensual. Como se dedos invisíveis fizessem escorregar as alças do sutiã, prometendo uma revelação. Deu certo. A noite acabara em beijo.

Ele a desnudou com o olhar. Escolhera a renda vermelha para a lingerie. Ele não viu mas ela sabia que estava lá. Tentou uma cumplicidade telepática. Sentiu-se arder. Não queria ser difícil. Mas precisa saber se valeria um segundo encontro.

Foto: Gaining Visuals em Unsplash

A filha interrompeu a lembrança, pedindo para dormir mais tarde. Dez minutos de canal de desenhos. Era tarde; no dia seguinte, escola. Negou. Enquanto a menina rezava, ajoelhou-se, lembrando o beijo e o olhar de desejo. Como teria olhado para ele? A filha contava as histórias do dia sob as cobertas e ela, ainda, na pose de oração.

Beijou a menina aninhada na cama. “Vou dormir melhor depois do nosso beijo”. Enviou a mensagem. Apagou as luzes da casa. Ligou o chuveiro. “Eu também”, ele respondeu. Entrou no banho, avaliando suas curvas. Inevitável imaginar que, em breve, seu corpo estaria nos braços dele. Adivinhou suas ousadias.

Fim de tarde, mandou mensagem. “Mais um chope? Uma pizza?” Um traço cinza apontou o não recebimento. Deitou com a filha naquela noite. A menina tinha febre. Esperou baixar. Verificou o telefone e o convite ainda não fora recebido. Nem as outras três mensagens seguintes, para checar. Traço único, só de envio. SMS sem resposta. Telefonema sem completar.

Tarde, a noite era escura. Manhã, céu de chuva. Olhos molhados. Desencanto. Cinza não se tornou azul.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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