
Com Ana Lúcia Gosling

Foto: Arquivo pessoal da autora
Entre as celebrações do seu centenário, O Globo promoveu, há uma semana, o lançamento de “Um século em cem crônicas”, uma antologia reunindo textos de 32 escritores brasileiros, que assinaram colunas no jornal, no decorrer do último século.
O naipe é de peso: Guimarães Rosa, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, João Ubaldo Ribeiro, Fernando Sabino e outros maravilhosos. Aparecem em ordem cronológica, traçando, pelos caminhos da escrita, uma linha do tempo e de mudanças sociais.
Sobre as marcas pessoais do gênero – seja pelo subjetivismo do texto, seja pelos traços culturais das épocas nele espelhados – , por suas narrativas se nutrirem do cotidiano, falou, no último sábado, Eduardo Affonso, no artigo “Os cronistas fazem a história”, também para O Globo:
“A crônica é um respiro, um pouquinho de saúde em meio a conchavos, escândalos, balas perdidas (…) Obra de um flâneur que, por registrar o efêmero, talvez conte melhor a História”.
Penso, depois de lê-lo, a abordagem da realidade pelos cronistas ensejar aproximações duradouras.
Na infância, consumi as famosas coletâneas do “Para Gostar de Ler”. Desde a adolescência, crônicas do jornal viraram hábito, com doses de humor ou reflexão. Comprei o livro, ávida pelos reencontros com os autores do passado. A saudade de Ubaldo me fez quebrar a estrutura idealizada pelas organizadoras. Saí da livraria e li, na rua mesmo, o meio, os três textos do escritor, cheia de saudades: da prosa do autor, do tempo da narrativa (a sua adolescência) e do tempo em que ele nos escrevia.
Gargalhei e me emocionei. Suas palavras me transportaram e preencheram o além do texto. A casa onde a leitura se deu próxima da janela, cuja paisagem verde se destacava quando os olhos se erguiam. O som da panela de pressão misturado às vozes ao fundo, na cozinha. O cheiro do jornal. Os cenários ficcionais e os reconhecíveis. Cronistas têm um jeito manso de contarem-se histórias partindo de um nada de detalhe: um passarinho pousado, uma menina segurando uma boneca, rugas marcadas numa testa – tudo à toa virando reflexão de vida.
Nenhum reencontro me alegraria mais: as crônicas relidas. Algumas recortadas e guardadas, por anos, numa época analógica. Perdidas no tempo.
Eduardo Affonso escreve artigos de opinião para O Globo, aos sábados. Aos domingos, publica suas crônicas, na Coluna da Lu Lacerda, na Revista Veja. Ministra uma oficina literária, estrelada por crônicas, gênero preferido de seus alunos (eu incluída). Sabendo valorizá-las, em seu artigo mencionado criticou o senso comum sobre o gênero:
“impressa em papel de segunda, vai no dia seguinte embrulhar peixe na feira”.
Ao contrário do suposto, crônicas, mesmo se datadas, podem ser eternas. Perenes são os sentimentos descritos por Ubaldo, seu humor, suas lembranças de infância. A malícia do menino diante da descoberta das mulheres, descrita de forma reconhecível por quem se inicia no amor e no desejo. A conexão criada, lá atrás, entre leitora e autor. Se é efêmera a prosa do cronista, como nos apaixonamos por Rubem Braga e Nelson Rodrigues, sem seus escritos nos serem contemporâneos? Suas palavras voaram, atravessaram o tempo.
A crônica exige cumplicidade, entrega, emoção real. Andar pelo mundo, com lentes de grau, mente perceptiva e alma desnuda. Ser cronista não é fácil, não. Requer intimidade. Se enrolam o peixe da feira, antes, crônicas criam conexões íntimas, despertam sentimentos profundos. Não se perdem. Nem em um século de histórias.


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com César Manzolillo













