Às quartas – Coroas

Foto: Centre for Ageing Better, em Unsplash

 

– Você vai operar catarata, não vai?

– Não, vou pôr uma lente.

– Tá com vergonha de dizer que tem catarata? Medo de que te achem velha.? Mentira tem pena curta.

– Miopia, Marina. Ou astigmatismo, sei lá. Vou operar um desses. Quero deixar de usar óculos.

– Quando a história chegar no ouvido da Vivi… ela vai achar que você fez plástica e quis esconder.

– Não viaja!

– Quer casar um dinheiro? Cinquentinha?

– Não.

– Vivi é fofoqueira. Adora uma história, um boato.

– Vivi, né?

– Não tem nada demais dizer que vai operar catarata. Boato é pior.

– Eu não vou operar catarata!

– Não é possível que só eu esteja degenerando. Você é dois anos mais velha do que eu!

– E daí? Sempre me cuidei.

– Passa creme no olho? Protetor solar? Não tem como se cuidar pra catarata, não!

– Claro que tem.

– Ah, Marcia, vamos mudar de assunto. Já me irritei com essa falsidade.

– Não entendo como meus problemas médicos podem te afetar tanto.

– Não é o problema, é a mentira.

– Você insiste…

– Muito ruim envelhecer sozinha. Minhas amigas, com a mesma idade, não se degeneram? Só eu?

– Do que você está falando?

– Você namorando um cara dez anos mais novo e eu, com Aníbal.

– Não fala bobagem. Quisera eu ter uma relação tão companheira, de vida inteira, com um homem.

– Depois você dizendo que não usa botox.

– Mas não uso mesmo.

– A pele do papo esticada. Papo esticado sem botox nem fios de ouro? Não existe.

– Faço ginástica facial. Vou te mandar o link.

– Que link, Clarice? Eu tenho cara de quem faz ginástica facial? Botox mesmo! Quando não der mais conta, plástica. Nada de paliativo. Não tenho paciência.

– Então não reclama.

– Ah, tem outra: você dizendo que não entrou na menopausa. E a gente fingindo acreditar.

– Não entrei. Ainda menstruo todo mês.

– Todo mês, Clarice?

– Todo mês.

– Nem eu, nem Vivi, nem Carmem, nem Ana Maria, ninguém mais menstrua.

– Quer ver minha tabelinha?

– É muita derrota falsificar tabelinha, hein? A que ponto se chega!

– Desisto, Marina. Vem cá, você confirmou se vai ao show do Bruno?

– Ainda estou pensando.

– Sabe se tem lugar pra sentar?

–  Já não aguenta horas em pé?

– Aguentar, eu aguento. Mas prefiro sentar e me levantar só na hora da música, da dança.

– Que dança?

– Você não dança?

– Eu assisto. Tem pista de dança?

– Pop rock, né? Deve ter.

– Eu não sei como você sabe essas coisas. O tempo não passa pra você.

– E eu não sei como você deixa o tempo passar. Sem prestar atenção.

– É ou não é catarata?

– Segredo?

– Prometo!

– Não é.

– Ah, Clarice!

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *