Às quartas – Ciranda

Soltou a mão do pai, misturando-se aos outros no futebol na pracinha. Como biruta de posto, jogou os braços para o ar. As mãos escondidas no casaco um número acima. “Vem aqui, deixa dobrar a manga”.

O jogo seguia sem ele. Tinha pressa. Mas o pai, agora, podia vê-lo espalmar a bola. Ralou os joelhos ao cair no chão. Buscou consolo. “Vamos para casa”. Quis desenrolar as mangas mas estavam no tamanho certo. Crescera de repente e o casaco lhe vestia melhor.

Não se interessava mais por futebol. Lançava torpedos na tela do celular, afundando aviões num mar de plasma. O pai o puxou: era hora de ir, de comer, de dormir, de acordar, pegar o ônibus, fazer a prova, passar de ano, pular na piscina no verão, de onde saiu enrugado e ameaçado de castigos, quando o outono chegou.

Pegou o ônibus para a faculdade. O casaco encolhido, os punhos de fora, o peito apertado. Deu o capote à namorada. Nela, cabia perfeitamente. Pararam a vida num beijo no fim daquela tarde. “É cedo para namorar”, o pai disse, antes de constatar sua distração: os anos passaram, as camisas, antes largas, não cabiam no rapaz.

Não pedia mais ajuda para desamarrarem-se os nós dos sapatos. Havia muito não precisava do pai. Chegava tarde da escola, das festas, dormia fora uma ou outra noite. Deixavam-se as luzes da varanda acesas em vão. Estava onde a noite era escura e não podia ser alcançado. Recebia salário, obedecia a horários, pagava boletos.

Pai e filho quase não se viam na marcha dos dias. Cruzaram-se na cozinha numa noite. Na manhã seguinte, carregou as malas até o elevador. Abriu uma porta nova e espreguiçou-se no apartamento sem móveis. Acordou ao lado da esposa na cama, alisou sua barriga de grávida e, juntos, sonharam sob as nuvens pintadas no teto do quarto azul do bebê. Dormiram até o choro do neném acordá-los e ele sair para pegar um avião. Mulher e filho o esperavam no aeroporto, na volta. O menino tinha nas mãos o desenho feito na escola, como presente.

Foto: Juan Goyache em Unsplash

Vestiu nele um casaco parecido com o que teve. A manga folgava sobre a mão estendida pelo menino. Caminharam de mãos dadas, uns poucos passos e, ali, o tempo parou porque ficou a lembrança.

Chegou com a família à casa paterna, onde a vida girou ao contrário. Era ele a criança, comendo do prato favorito, da sobremesa preferida. Encolheu-se no sofá, encostado ao pai, como se seu corpo de menino, encapsulado no de homem, ainda quisesse colo.

A tarde acabou. Partiram. Anoiteceu.

Retornaria para alojar o pai no quarto de baixo. Prometeria a ele o dia, quando o sol raiasse. Contaria histórias aprendidas havia tempo. Cantaria para fazê-lo dormir. Quando a manhã chegasse, encontraria o leito desocupado.

Agora, aguarda o filho buscá-lo na casa vazia. Está sentado onde ficava o sofá, com saudades de ser menino. Pela primeira vez, há silêncio. Nota o som dos sapatos sobre o assoalho, as vozes que o chamam. Deseja ter a mão do filho para levantar-se. E que a vida pause, nesse instante, antes de chegar sua hora de dormir.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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