Amanheceu repleta de ausências.
Não sabia se sonhara com aqueles que haviam deixado saudade. Não lembrava. Ou se fora o silêncio na casa vazia, de domingo até a manhã de segunda. Talvez algo inconsciente.
Embora o Sol inundasse a segunda-feira de luz, os pássaros atropelassem as cantorias uns dos outros e já houvesse buzinas e vozes, ao abrir os olhos, seu primeiro sentimento foi o da ausência.
A vida não pára de renovar-se, aprendera. Mesmo o emprego de vinte anos, é outro, vinte anos depois. O casamento longo atravessara diferentes fases. As pessoas conhecidas no íntimo apresentam novas ideias, alteram perspectivas, mudam, enferrujam. Nada nem ninguém é estático.
Se há gente partindo, os novos nunca param de chegar. Se há vazios, sempre há com o que preenchê-los. Ainda que sejam outras as pessoas, as relações, as experiências, nenhuma vida é só silêncio. Portas se abrem ao mundo.
Mas, naquele dia, a falta da vida que, um dia, a preencheu gritou. A mesa cheia de parentes que protegeram a inocência da sua infância. As brincadeiras no chão de paralelepípedo onde tantas vezes ralou os joelhos. O colo dos pais, resolvendo, entre afagos, as maiores dores e reservando à sua vida adulta a permissão de, por um instante, poder sentir-se criança cuidada novamente. O futuro imaginado como certo, na família formada, no dinheiro investido, no trabalho dedicado, evaporado, tornado memória de esperanças. A fé no amor e nas relações humanas, sufocada de realidade.
Subitamente, a vida era irreconhecível, mesmo cercada de novas possibilidades. Vivia sustos e deslumbramentos. Esgarçava interesses em direções impensadas. No corpo, sentimentos antes não permitidos. O mundo era um leque e abria-se. Talvez ela fosse, até, mais feliz. Mas…será?
No dia amanhecido, cinza por dentro, fizeram-lhe falta os amores perdidos. O que mais a amou, o que a amou melhor. O que lhe ensinou a liberdade, aquele a quem quis prender-se. Careceram os caminhos sonhados, a poesia desperdiçada, a arte embargada, a viagem para tão longe que só ela a si pudesse alcançar.
Limpou remelas e sombras nos olhos, diante do espelho. Escovou os dentes, esfregando pensamentos. Percorreu os corredores da casa, cercada pelas lembranças de viagens, os objetos colecionados nas paradas, os presentes dos filhos, os livros espalhados nas estantes. Ainda assim, era grande o vazio. Entre a porta do quarto e a da rua, tudo cenário.
E ela, onde estava, se não no corpo que habitava? Nas lembranças do vivido ou no que negligenciou? Abraçada a quem a abriga ou largada à beira de quem a abandonou? Onde está, agora, quando do coração emergiram tantas ausências?
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo
Ana, marcante essa frase “Mas, naquele dia, a falta da vida que, um dia, a preencheu gritou.”. O sentir a ausência, a morte é um descortinar da vida. O vazio é imenso! A saudade! A falta de vida do corpo que o habitou! Tenho que entender os meandros da vida! Seu texto me fez pensar na grande ausência vivida!
Seu texto deixou uma doce dor, de um futuro certo, mas temido. Deixou muito o que refletir, escolhas, inércias, apegos…
Trabalhar perdes e ausências em nossas vidas… Quem nunca? Seus textos são poderosos, querida Ana, muito obrigado por essa linda coluna.
Natalia, Ale e Raphael, obrigada pelas devolutivas carinhosas. Nada é mais satisfatório, pra quem escreve, do que saber que tocou um coração. Seus comentários são um tesouro.