ÀS QUARTAS – Aqui

Com Ana Lúcia Gosling

Foto: Kelly Sikkema, em Unsplash

 

Fiquei triste ao ver-te. Não, espera, foi antes. Uns dias antes.

Escapei de um assalto e de ser obrigada a dirigir meu carro numa direção inversa. Vi-me muito frágil ali, imaginando não poder decidir o percurso, a velocidade, o destino. Sem saber qual seria o final. Mas fui liberada, me levaram só a bolsa, e agradeci à sorte. Mas o medo entranhou. O cérebro ainda reage, nervoso, a qualquer cumprimento. Nada me basta pra voltar à normalidade.

E saí da experiência sem nenhum abraço. Sem o teu abraço. Tu sempre me esperavas para o jantar e reconhecias em meus olhos os humores do dia. E eu, que não pensava em ti, me lembrei, no dia, da maciez da tua pele. Que te beijava o rosto, lembra?, e amava como eras macio. Os homens arranham, pinicam… Eu deslizava em ti, sentindo-lhe o perfume, guardando os sons da tua respiração, e eras tenro, cama que abriga, coberta que aquece.

Era nisso que pensava quando vi a foto da notícia, anunciando que virias para rever quem ficou. Haverá festa de chegada, banda na pista do aeroporto. Depois de tantos anos, passarias por aqui. Não por ti. Se pudesses, deixarias quieta a vida de que abdicou. Mas a vida vem e vai. Dessa vez, tu virás junto, atendendo ao chamado profissional. E a mim, que daqui não posso sair, me caberá recebê-lo à porta e abrí-la, para pisares sobre o chão do nosso passado.

Fiquei triste, eu dizia. Não porque vens. Mas por ter-me voltado o vazio da tua partida. Éramos multidão, tu numa ponta, eu na outra e, entre nós, um mar de sentimentos e tantas palavras silenciadas. Sorrias porque te cabias sorrir, ocupado com a organização do tempo. Calava porque me cabia proteger a intimidade da nossa dor. Sangrávamos, invisíveis, expostos diante de todas as pessoas que supunham conhecer-nos. Minhas lágrimas rolaram pra dentro, afogando palavras que seriam tuas, amorosas, devotadas. Sabias, em silêncio, o amor que te ofertava. E eu enxergava o que morrera em teus olhos, antes do último beijo, que nunca pude dar-te.

Nunca mais voltaste. Eu nunca fui atrás de ti. O teu abraço me faltou por anos. Tua ausência, fui sentí-la agora. No vazio da rua onde saltei, escapada do perigo. Na chegada à porta que me abrigou em segurança. Na cama vazia onde me encolhi impotente. E, logo depois, a foto, a notícia, tu vindo. Não te quero aqui. Embora ainda sorria ao som da tua voz. Não te quero aqui. Porque tu não poderás ficar. Porque, aqui, já não quero que fiques.

ANA LUCIA GOSLING

@analugosling

 

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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