Sabia que dançaríamos no Festival Copasetic e nosso vídeodança (*) fora selecionado para concorrer a uma premiação.
Sabia, mas anunciou-se na página do festival. A alegria virou queixo caído no chão: entre 300 candidatos, foram selecionados 122 sapateadores e 23 coreografias. Nós, entre eles.
Temos limitações: a idade do corpo, o tempo para os ensaios, a rotina de vida atropelando os sonhos artísticos. Sentimos alegria por estar, viver e ser capaz. Por produzir e divertir-se. Por existir e destacar-se num mundo ofuscante de tudo que foge ao padrão.
Venho de longo caminho para aceitação do meu corpo. E confesso aqui, sem pudor; sei, a essa altura da vida, ser estrada comum a todas as mulheres, praticamente.
Sapatear era sonho de menina, alimentado nas madrugadas em que, pela tevê, eu assistia aos musicais da época dos meus pais. Naquelas noites, o sonho só me roubaria suspiros. Jamais movimentaria braços e pernas, esparramados no ar, sem envergonhar-me. Estar à frente de uma plateia, nem pensar. A mente cheia de dúvidas. Conseguiria, eu, fazê-lo? Não seria muito desengonçada?
Fui uma adolescente insegura. A auto estima é conquista da mulher adulta e, ainda assim, contou com altos e baixos, até eu entender minha força e singularidade.
Sou uma mulher com seus 50 e poucos anos. Tenho muitos quilos acima e sou muito menos ágil do que a menina que escondia, atrás de janelas fechadas, o seu gosto pela dança. A musculatura da jovem precisou, em tempos tardios, dar conta dos anos de pouca atividade física e das hérnias adquiridas. A vida foi ficando cada vez mais séria e, paradoxalmente, a coragem de sonhar cresceu. Dançar era inevitável.
Eu e minhas colegas carregamos nossas histórias. Sapateamos sobre passados difíceis, desafios, perdas. Colecionamos vitórias. A gangorra da vida ora nos faz sorrir, ora chorar. As pernas nos amortecem a queda e nos impulsionam para o alto. Mas, também, fazemos música com os pés. Respeitamos o tempo do corpo mas, de vez em quando, o atropelamos com nosso entusiasmo. Tomamos café no intervalo das aulas e ensaios e rimos por nada, por estarmos ali, podermos nos abraçar e dançar, errar o passo e consertar o giro. Se encontro espaço para um “schuffle” é a glória. Sou feliz com pouco.
É desafio maior dançar e expor-se com um corpo e uma mente menos jovem. O que se aprende em um minuto, talvez demore muitos outros. Mas é fácil lançar-se quando sabemos a vida possuir menos mistérios do que anunciam nossos temores. Seguir o fluxo, a música, o tempo é natural se há simbiose com a beleza – a verdadeira, apurada pelo olhar da maturidade.
O corpo maduro é diferente do jovem. Mas sabe-se melhor e mais potente, capaz de levar-nos a lugares onde não imaginaríamos estar. Na dança e na vida.
Já faz algum tempo, meu corpo é, finalmente, a casa onde eu sempre quis morar.
(*) O vídeodança concorrente no Festival Copasetic se chama “Gingers – Uma obra de arte do tempo“, do grupo Sapatos Ageless, sob a coordenação de Rafaeli Mattos, e pode ser visto no seguinte link: