Às quartas – “Abri veredas e cancelas pra poder passar”

Sabia que dançaríamos no Festival Copasetic e nosso vídeodança (*) fora selecionado para concorrer a uma premiação.
Sabia, mas anunciou-se na página do festival. A alegria virou queixo caído no chão: entre 300 candidatos, foram selecionados 122 sapateadores e 23 coreografias. Nós, entre eles.

Foto: Festival Tap in Rio – Arquivo pessoal da autora

Temos limitações: a idade do corpo, o tempo para os ensaios, a rotina de vida atropelando os sonhos artísticos. Sentimos alegria por estar, viver e ser capaz. Por produzir e divertir-se. Por existir e destacar-se num mundo ofuscante de tudo que foge ao padrão.

Venho de longo caminho para aceitação do meu corpo. E confesso aqui, sem pudor; sei, a essa altura da vida, ser estrada comum a todas as mulheres, praticamente.

Sapatear era sonho de menina, alimentado nas madrugadas em que, pela tevê, eu assistia aos musicais da época dos meus pais. Naquelas noites, o sonho só me roubaria suspiros. Jamais movimentaria braços e pernas, esparramados no ar, sem envergonhar-me. Estar à frente de uma plateia, nem pensar. A mente cheia de dúvidas. Conseguiria, eu, fazê-lo? Não seria muito desengonçada?

Fui uma adolescente insegura. A auto estima é conquista da mulher adulta e, ainda assim, contou com altos e baixos, até eu entender minha força e singularidade.

Sou uma mulher com seus 50 e poucos anos. Tenho muitos quilos acima e sou muito menos ágil do que a menina que escondia, atrás de janelas fechadas, o seu gosto pela dança. A musculatura da jovem precisou, em tempos tardios, dar conta dos anos de pouca atividade física e das hérnias adquiridas. A vida foi ficando cada vez mais séria e, paradoxalmente, a coragem de sonhar cresceu. Dançar era inevitável.

Foto: A coreógrafa Rafaeli Mattos (que é, também, colunista do ArteCult – Dança) e o Grupo Sapatos Ageless – Arquivo da autora

Eu e minhas colegas carregamos nossas histórias. Sapateamos sobre passados difíceis, desafios, perdas. Colecionamos vitórias. A gangorra da vida ora nos faz sorrir, ora chorar. As pernas nos amortecem a queda e nos impulsionam para o alto. Mas, também, fazemos música com os pés. Respeitamos o tempo do corpo mas, de vez em quando, o atropelamos com nosso entusiasmo. Tomamos café no intervalo das aulas e ensaios e rimos por nada, por estarmos ali, podermos nos abraçar e dançar, errar o passo e consertar o giro. Se encontro espaço para um “schuffle” é a glória. Sou feliz com pouco.

É desafio maior dançar e expor-se com um corpo e uma mente menos jovem. O que se aprende em um minuto, talvez demore muitos outros. Mas é fácil lançar-se quando sabemos a vida possuir menos mistérios do que anunciam nossos temores. Seguir o fluxo, a música, o tempo é natural se há simbiose com a beleza – a verdadeira, apurada pelo olhar da maturidade.

O corpo maduro é diferente do jovem. Mas sabe-se melhor e mais potente, capaz de levar-nos a lugares onde não imaginaríamos estar. Na dança e na vida.

Já faz algum tempo, meu corpo é, finalmente, a casa onde eu sempre quis morar.

 

Foto: Apresentação Projeto Dançarte – Arquivo pessoal da autora

(*) O vídeodança concorrente no Festival Copasetic se chama “Gingers – Uma obra de arte do tempo“, do grupo Sapatos Ageless, sob a coordenação de Rafaeli Mattos, e pode ser visto no seguinte link:

 

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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