
Com Ana Lúcia Gosling

Foto: Devon Janse van Rensburg, em Unsplash
No interior de seis florestas no mundo, uma em cada continente, há uma pequena caverna com uma passagem para a aldeia dos espíritos libertos.
À porta, um guardião idoso, com dedos magros, toca um ponto oculto no umbigo da pessoa, desprendendo corpo de espírito. Pele, músculos e ossos deslizam como uma peça única, mantendo intacto o contorno humano.
O corpo, afastado do espírito, não se conecta mais. É devolvido aos parentes, para um desfecho. Mas o espírito permanece vivo e insubordinado às regras divinas, ao contrário dos que desencarnam com a morte.
Livre do invólucro, vive-se na aldeia. Não há fome. Nada dói ou lateja. Não há pobre nem rico porque não há posses. Não há padrões estéticos; tudo é luz. Só existe essência. As flores são cores. Os bichos, energia amorosa. Os rios, leve correnteza. O vento, brisa morna.
Os libertos mantêm sua paixão e inteligência. Emanam libido. Expressam tesão e raiva com a mesma naturalidade que se solidarizam e se consolam. Gostam de festas. Não estão sob censura. Não precisam arrepender-se pois não há juízo final. Controlam a situação.
Deus não visita a aldeia. Talvez vele os mortais e se compadeça dos que lamentam terem vivido pouco. Sempre é cedo, quando se morre. Na aldeia, não há morte. Há, verdadeiramente, a continuidade da vida.
Quase tudo permanece. Os programas na tevê. Os canais adultos. As preces vãs. Os livros na estante. As tardes de futebol. Os debates evoluem em volta da mesa vazia, afinal, para o espírito, a palavra é o alimento.
Se entediados, passeiam pela humanidade. Visitam, em silêncio, pessoas conhecidas, voltam aos locais das suas histórias. Mas, conforme se passam os anos, alguns se arrependem. As cidades mudam. O mundo acaba habitado por estranhos. “Será que, na morte, todos se reencontram no céu?”. Ousaram-se deuses. Se o céu existir, é triste pensar não poderem ascender nem reencarnar por terem rejeitado o plano divino.
Correm boatos de que, em seis florestas no mundo, uma em cada continente, há uma caverna com uma passagem para a mortalidade. Uma criança guardiã é capaz de ver e tocar o centro de luz do espírito liberto. Um corpo idoso blinda o espírito. Recuperam-se as sensações de frio e calor; dor e prazer. Mas vive-se perdido, como demente, misturando suas memórias com as da carcaça emprestada.
Mesmo assim, há quem sonhe voltar a ser mortal. Morrer para viver ao lado dos seus, eternamente, é crença trazida para a aldeia, em que todo humano gosta de acreditar.


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com César Manzolillo













