Apuração do desfile que é a nossa vida

 

Senhores, vamos às notas.

O avaliador poderia dar notas de 9 a 10. Mas quando passei ele estava de cabeça baixa. Como o juiz de pelada de campinho de bairro que fica conversando com algum chegado e não vê a chegada mais dura ou a bola que saiu pela lateral. Tudo bem, no quesito fantasia não há metáfora que sobreviva assim. Começou a apuração.

Nossa vida é tipo escola de samba contando seu enredo na passarela. Na concentração a família de quem não quis saber o sexo do bebê pergunta se é ele ou ela. O que toda mãe quer é que o filho seja gente feliz não importa se no asfalto ou na favela. Chá de revelação é moda bem brega. Espero quando for minha vez não queimar minha língua com vela.

A infância é cheia de sonhos e fantasias. Certa vez Janusz Korczark afirmou que o que deve cansar os professores não é “descer ao nível de compreensão das crianças”. O que deve cansar mesmo é o fato de ter de se elevarem até alcançar o nível dos sentimentos das crianças, ficar na ponta dos pés, estender as mãos e não machucá-las. Criança é ser superior porque está na baixa etapa de conhecimento. Conhecer é se tornar estúpido? Não. Ou talvez. Lidar com o conhecimento é que se faz beirando o impossível. Ser melhor é muito mais difícil do que ser alguém. Entre desenhos animados, jogos e joguinhos, confusas interpretações da vida adulta, medos e crenças atabalhoadas, no quesito fantasia a nota é sempre alta.

A vida avança. Não importa o quesito, a nota em evolução está baixa. Um amigo diz que não pretende ter filhos porque é cruel imaginar colocar um novo ser num mundo tão horrível. Ele acredita que estamos perto do fim. O colapso místico e real, o fim da água se aproximando, os alimentos envenenando e rareando, a miséria como capital ou o capital como miséria. Errado ele não está. Também não posso dizer que esteja certo. Não há, portanto, harmonia nesse desfile que é ter que entrosar ritmo e canto. Ninguém parece ter noção completa da letra da música até começar a cantar.

Como Shakespeare, dizem, inventou o amor, apresentamos as notas de mestre-sala e porta-bandeira. A pontuação leva em conta a harmonia do casal, a dança e a fantasia. Amor é fruto da divina arte de ser incompleto e querer ser incompleto pelo outro. Ser feliz sozinho é difícil. Ser feliz junto também. Mas ser feliz em casal é o começo do recomeço. Amar é se tornar um novo ser. Não à toa, certidão de casamento substitui certidão de nascimento. Nesse quesito, levanto em conta as comédias românticas, as terapias, as letras de música, as obras literárias, as danças em par, o desejo maior na folia de rua e a libido que floreia os dias entre a quarta-feira de cinzas e a terça-feira de carnaval, a nota é dez.

Nunca é tarde para recuar. Não deu certo na carreira, há chance em outra. Mesmo com etarismo, o mundo pulsa para todos com possibilidades maiores ou menores dependendo da incompreensão. O intérprete do samba enredo pode ficar rouco, a vida renasce a cada momento que encontramos sentido. Pode ser um filho, um sonho de conhecer um lugar, uma nova paixão por algo ou alguém. A comissão de frente aqui vem de longe, ou de trás, sempre com nota alta porque é quando a gente acorda, encara o desafio, ergue a cabeça e faz de tudo para ver o sol se pôr para poder vê-lo nascer mais uma vez.

A escola não estourou o tempo. Os portões se fecharam e ninguém comemorou. O fim é tido como chato, trágico, cruel de saudade e injusto. Mas o que se tem como certeza do carnaval é que todo desfile acaba. É isso que torna a apuração pouco importante. Todo desfile acaba. Todo portão fecha. Toda fantasia é retirada do corpo. Todos os sons são desligados em algum momento. E é nesse momento que todo mundo faz o coro de campeão, bem ali na curva da dispersão, sorrindo, leve. Um confete pousando no chão da Sapucaí.

 

Todos retornam no sábado das campeãs.

 

THIAGO KUERQUES

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Sou escritor, professor e jornalista. Formado em Turismo (UFRRJ), Jornalismo (UNESA), Letras (UFF), Pós-graduado em Turismo Sustentável (CEFET) e mestrando em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias (UERJ). Publiquei os livros Território (2017), A Balada do Esquecido (2018), A Próxima Pandemia (2019), Tordesilhas (2021) e Vezenquando (2022), entre outras antologias das quais participei. Conquistei alguns prêmios literários, entre os quais Prêmio Baixada e Prêmio Trema 2021 e 2022. Atuo realizando oficinas de escrita sensível, escrita criativa, escrita periférica. Também realizo palestras para jovens e adultos com temas como literatura periférica, incentivo à produção literária, produção artística de diversas linguagens, comunicação e territorialidades. Minha obra fala sobre pessoas, memórias, educação e comunicação de um subúrbio melhor, de uma busca incessante pela valorização da identidade e do território.

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