Ramon Nunes Mello (@caderno_de_autoficcao) é escritor, jornalista e formado em Artes Dramáticas. É ainda mestre em Literatura Brasileira. Publicou os livros de poemas Vinis mofados (2009), Poemas tirados de notícias de jornal (2011) e Há um mar no fundo de cada sonho (2016). É também curador da obra dos poetas Rodrigo de Souza Leão e Adalgisa Nery.
Confira abaixo a entrevista exclusiva que preparamos pra você.
ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?
Ramon Nunes Mello: A porta de entrada da literatura em minha vida se abriu na escola, me lembro de um livro chamado Maria vai com as outras, de Sylvia Orthof, presenteado pela professora da alfabetização, tia Naia, em Araruama. Fiquei encantado com a história da ovelha chamada Maria, que se recusava a fazer tudo que as outras ovelhas do rebanho faziam. Sem dúvida, foi uma leitura marcante, que definiu os rumos de minha vida. Não havia, nessa época, o desejo de escrever, mas o encantamento com a literatura, com a arte de narrar uma história. Depois, teve uma professora de português e literatura, Norma, que me presenteou com livros de ficção e poesia, ampliando minha percepção da vida. Mais adiante, através do encontro com o teatro, quando fui estudar na Escola Estadual de Teatro Martins Pena, pude amadurecer minha trajetória como leitor, conhecendo autores que, até então, desconhecia: Nelson Rodrigues, Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector. Essas leituras me levaram a outros autores. Assim, a leitura germinou o meu desejo de escrever.
AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?
RNM: Compreendo a inspiração como um processo de fricção com realidade, principalmente através da leitura de livros. Mas ocorre também quando assisto a um filme ou a um espetáculo de teatro ou dança. Ou, ainda, quando estou em contato com a natureza, exercitando um estado de presença que me permite ampliar minha visão da vida.
AC: O fantasma da página em branco: mito ou verdade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, o que faz para resolver esse problema?
RNM: Enfrentar uma página em branco é um desafio, sempre. Entretanto, busco me colocar à disposição da literatura a todo momento, vivendo de forma presente, íntegra, reconhecendo até mesmo a dificuldade para escrever. Percebo dinâmicas diferentes no meu processo de escrita de prosa e de poesia. Na prosa, tenho de mergulhar num projeto de escrita e investigar a forma como desejo contar a história ao longo do tempo, escrevendo direto no computador. Com a poesia vou fazendo anotações no papel, entendendo como o poema se apresenta e depois vou para o computador reescrever, trabalhar o poema.
AC: Fale um pouco dos livros que já publicou até hoje.
RNM: Comecei escrevendo contos, depois poemas. Considero o Vinis mofados (Língua Geral, 2009) minha estreia na literatura, com poesia. Como todo primeiro livro, estão concentradas minhas obsessões literárias, a forma de enxergar o mundo com liberdade, o diálogo com a música e a coloquialidade dos versos. Em 2010, ganhei uma bolsa do Governo do Estado do Rio de Janeiro, na época, para escrever Poemas tirados de notícias de jornal (Móbile, 2011), a partir de um projeto literário. Foi uma experiência desafiadora, diferente do que havia experimentado, que me gerou a possibilidade trabalhar a posteriori a performance com a poesia falada. Meu último livro de poemas é Há um mar no fundo de cada sonho (Verso Brasil, 2016). Nele, investigo a forma como o vírus hiv entra nos meus versos, foi a primeira vez que falei publicamente sobre o tema. Publiquei ainda um infantil chamado A menina que queria ser árvore (Oito e meio, 2018), organizei Escolhas – autobiografia intelectual, da professora Heloísa Buarque de Hollanda (Móbile, 2011), escrevi Ney Matogrosso – vira-lata de raça (Tordesilhas 2018) e reuni 96 poetas na antologia Tente entender o que tento dizer – poesia e hiv/aids (Bazar do Tempo, 2018). Além disso, organizei a obra de Adalgisa Nery e Rodrigo de Souza Leão (confira aqui o site de Rodrigo, administrado por Silvana Guimarães).
AC: Um livro marcante. Por quê?
RNM: Lorde, de João Gilberto Noll, por sua capacidade de implodir a linguagem e prender o leitor em sua narrativa que se mistura com a poesia suja das ruas, dos seres errantes. O eu é o outro na escrita do Noll, e isso me fascina.
AC: Um escritor marcante. Por quê?
RNM: Só um? Poderia citar vários que, assim como o Noll, foram marcantes em minha vida: Caio Fernando Abreu, João Silvério Trevisan, Néstor Perlongher, Carola Saavedra, Al Berto, Clarice, Waly Salomão… Autores que me causam estranhamento com suas narrativas, seus poemas. Eles têm em comum essa capacidade de desvelar a realidade, e nos enxergarmos para além de nós mesmos.
AC: Sei que você é curador da obra dos poetas Rodrigo de Souza Leão e Adalgisa Nery. Como esse trabalho se desenvolve?
RNM: Estou como curador e representante legal da obra de Rodrigo de Souza Leão desde sua morte, em 2009, a convite de seus pais, Antonio Alberto e Maria Sylvia. Busco preservar a memória do Rodrigo e organizar sua obra literária. No caso dele, em específico, além de publicar os livros, realizei, com a autorização dos herdeiros, a doação do acervo literário para o Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa e do acervo pictórico para o Museu Imagens do Inconsciente. Também criei, em parceria com Marta Mestre a exposição Tudo vai ficar da cor que você quiser (2011) no MAM/RJ, com telas e poemas de Rodrigo de Souza Leão, e o documentário homônimo (2014) em parceria com Letícia Simões. O trabalho com a obra de Adalgisa Nery partiu do meu interesse em sua obra poética e da minha insatisfação com a falta de reconhecimento de sua história. Estou como curador da obra de Adalgisa desde 2010, depois que escrevi uma matéria sobre sua trajetória 30 anos após seu falecimento. Em contato com sua neta, a artista Nathalie Nery, consegui autorização de todos os netos herdeiros para organizar sua obra. Desde então, publiquei seus romances e cursei um mestrado na UFRJ para estudar sua poesia e escrever a dissertação Lembre-se da mulher triste – o caso Adalgisa Nery (2017).
AC: Na condição de jornalista, você já entrevistou dezenas de escritores brasileiros. O que aprendeu com essa experiência?
RNM: Aprendi que não há uma receita para fazer literatura. Os encontros literários me permitiram compreender o meu próprio processo de escrita e também ampliar a consciência sobre o mundo. Alguns desses encontros também me presentearam com bons amigos que permitiram continuar trocando sobre o fazer literário.
AC: Projetos em andamento: o que vem por aí nos próximos meses?
RNM: Neste ano, finalizei a organização da obra completa de poesia de Adalgisa Nery e entreguei para a editora José Olympio. Além disso, com Jorge Lira e Silvana Guimarães, estou finalizando a organização de um livro que vai reunir os livros de poemas de Rodrigo de Souza Leão. Também estou terminando de escrever meu próximo livro de poemas.
AC: Para encerrar, pediria que deixasse aqui uma amostra de seu trabalho como autor.
COMO ELIMINAR MONSTROS & DEMÔNIOS
para Ronaldo Serruya e Fabiano de Freitas
repita a você mesmo:
eu não sou um vírus
vamos repita:
eu não sou um
vírus
digo aos outros que sou louco para que as pessoas que tem medo de gente louca não
se aproximem de mim
me disse o leão
tenho adotado o mesmo método
para viver com hiv
promíscuo pervertido viado
coleciono o rótulos e jogo fora junto com as bulas de letras miúdas
que enchem as gavetas do armário
ao menos tenho conseguido entender
quem sou em meio a contagem de cd4 e quantidade de vírus no meu sangue
para classificarem como quiserem
indetectável
posso transar sem camisinha que não infecto ninguém
afirmam os médicos
infectar não contaminar, reaprendi a falar
assim como não se deve pronunciar aidético
palavra embolorada de estigmas
minha língua
gem está infectada pelo hiv-aids
não é a língua, é o cu! – berra copi pela boca de carrera
com sua dificuldade de se expressar e ainda reverbera em meus ouvidos
é o cu!
músculo de veludo cantado por piva
promessa-derradeira-entrada-
tenho eliminado monstros &
demônios
a cada dia
com reza brava
coloquei meus preconceitos no altar
olhei para eles rezei
para depois xingar um por um
por três anos aos prantos
até conseguir vomitá-los em ritos xamânicos
me olhei por fora embora por dentro
cheio de medo
me transformando em bichos
uma onça que lambe as próprias feridas
ou uma cobra de várias cabeças
apresentando a cura
enquanto participava do meu velório
sem choro nem vela
e prometia a guarda da biblioteca para o marona
quantas mortes nessa epidemia discursiva?
40 milhões de mortes em todo mundo
dionísio disfarçado de mendigo dançou comigo uma poesia cósmica e sem nome
enquanto eu cortava meus medos com golpes no pescoço
e decepava
pedaços do meu desejo de apontar
culpados
doloteglavir sódico & fumerato de tenofovir + lamivudina
ao meio-dia de estômago vazio
contando o tempo em comprimidos
enquanto meu corpo se entope de toxina
enquanto ainda contamos os mortos
mesmo sorrindo
tentando acreditar na cronicidade dos dias
reinventando narrativas
passeando entre medo incendiário
de al berto e os cantos de ilusão de perlongher
em noites de insônia
Bem, é isso. Até a próxima!
Colunista do canal LITERATURA
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AC Encontros Literários tem curadoria e apresentação (lives) de César Manzolillo (@cesarmanzolillo).