Igor Fagundes: o poeta, ensaísta e crítico literário é o convidado desta semana do AC Encontros Literários

 

Igor Fagundes (@igorfagundes.oficial) é poeta, ensaísta, crítico literário, ator, jornalista, Doutor em Poética e professor de Filosofia, Estética e Dança da UFRJ. Autor de 15 livros (o mais recente, de poemas, é tubos de ensaio, de 2021), coautor de mais de 50, além de organizador de diversas coletâneas literárias, acadêmicas, filosóficas, das quais VIRAL – dança & outras disseminações é exemplo de obra publicada também em 2021. Considerado por diversos críticos e poetas um dos maiores talentos de sua geração, comparece, no último dos quinze volumes da história da poesia brasileira, organização de Marco Lucchesi, da Academia Brasileira de Letras, como um dos autores mais representativos surgidos na década de 2000.

Confira abaixo a entrevista exclusiva que preparamos pra você.

 

ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?

Igor Fagundes: Antes de alfabetizado, fui contador de histórias para meus pais (quando se espera, na infância, bem mais o inverso). Seja oralmente, por desenhos, por manuseios de bonecos. Depois da alfabetização, passei a encaminhar a professoras do ensino básico versos no verso das provas (!). Se o poema, inicialmente, entrou atrás das folhas, por trás dos testes que a vida me impunha, a vida como teste, depois e agora, passou a inscrever a poesia sempre na frente. Nascido em 1981, vivi a época da máquina datilográfica, herdada do avô paterno. Só tive um computador bem depois, no meio da adolescência, quando não apenas escrevi poemas, mas novelas, contos, protótipos de romances e roteiros de cinema, bem como peças de teatro, encenadas, sob minha assinatura, ao completar a maioridade. Enquanto a literatura entra (e sai) pela palavra potencializada, a palavra entra (e sai) pelo corpo, pelas tramas do corpo, por entre seus vãos, vazios, silêncios. Por todas as suas extensões, tal como a tecla do computador, som sem o qual eu já mal sei escrever hoje, como se o ruído da máquina fosse uma espécie, ao revés, de marcação musical: eco do pulsar do coração. A linguagem se manifesta poeticamente em meu corpo em várias artes e áreas de (des)conhecimento, dobradas em uma, desdobrada em muitas, seja em prosa, seja em verso, seja na proesia cotidiana. Quando estudante de Química, descobri também ser alfabeto a tabela periódica. Com ela, produzem-se e liberam-se reações tão químicas quanto poéticas. Foram e são também ações e reações químico-poéticas as passagens pelo Teatro, Música, Desenho, Comunicação Social (Jornalismo), Letras, Filosofia e Dança. Por fim, e já há bastante tempo, “macumba” e “literatura” entram em minha vida não só como rimas toantes, mas também como entoações de um mesmo rumo de ensaios, poéticas, mitologias, cosmogonias, caosfilias, filosofias. Atrai-me pensar as macumbas – as encantarias, os catimbós, os calundus, as umbandas, os candomblés, as festas de rua, as giras de terreiro, as danças de deuses, os toques de tambores, os ritos de vela como livro de cera e parafina, o livro como vela com chama de verbo, para aquém e para além do âmbito religioso: as macumbas constituem ciência em sentido originário, amplo, aberto e, por isso mesmo, são essencialmente poesia. Penso aí, aqui, o poético jamais restrito à cultura letrada e às acepções tardias da tradição ocidental, como “sonho”, “loucura”, “delírio” e “ficção” em oposição ao real. É a realidade mesma que, a despeito do fato e do fake, se revela como incessante construção, desconstrução, reconstrução poética, concretamente experienciada nos multiversos de todo universo, no microscópico do astronômico, no astronômico do microscópico, sem qualquer dicotomia entre visível e invisível, carne e espírito, pensamento e emoção, terra e céu, profano e sagrado, as forças da natureza e o sobrenatural, tinta de caneta (e da impressora) e tinta do suor, saliva, sangue, sêmen.

 

tubos de ensaio é o lançamento mais recente. Foto: Divulgação.

AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?

IF: Do mágico do magma. Do léu e do beleléu. De um buraco aberto na esquina da rua, na quina da parede, no rodapé onde uma formiga reza suas senhas e seitas. De um Deus dará e de um Deus não dará. Dos diabos que nos carreguem. Dos diabos que carregamos: dos demônios que nós mesmo somos, lúdicos santos quando insanos lúcidos para além do bem e do mal. Dos sons, como você pode perceber, ouvir, vislumbrar nas faces das frases, porque, sobretudo, do silêncio que os canta. Ali, aqui, onde o vento faz a curva. E onde alguma curva de enjambement, parágrafo, pensamento faz vento. E onde o vento, contudo, se esvai. Pois a inspiração, se implica oxigênio e outros gases, também advém, não raro, da falta de ar.

 

AC: O fantasma da página em branco: mito ou realidade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, como lida com a questão?

IF: Para mim, todo mito é real, sem ser fato, e a realidade, sem ser fake, em sua face fugidia, fúlgida e múltipla, é mito, é mítica. Então, a página em branco, se fantasma, já e sempre compreende, na ausência, uma presença, como eu, como você, como tudo é, não sendo; como tudo não é, podendo ser. Somos todos espectros, assombros, fantasmas, nem sempre camaradas. Não escrevo sem assombrações. O tempo é página em branco que assombra.  E as palavras, em fartura ou fratura, culminam em fantasmas com frequência não camaradas: requerem a luta (não é mesmo, Drummond?) com elas (e não contra elas).

 

AC: Um livro marcante. Por quê?

IF: Um livro marca quando risca a pele e está livre para sê-la, quando está livre para não ser só objeto, quando está livre para não ser só sujeito, mas um acontecimento-verbo-fantasma que, foi dito acima, assombra, arrebata. Neste sentido, quando Tupinambá, em dança, me abraça em terreiro, é livro-livre, de carne-espírito. Quando um preto-velho Pai Benedito de Aruanda acende seu cachimbo, me escreve-e-lê na fumaça. Quando o atabaque se faz orixá, orixá-atabaque promete e cumpre a unidade de um livro possível do e no impossível. Sobre isso de partir ao pacto na encruzilhada, à travessia nonada, ao infinito, me diz sempre exu, pombagira, no grande sertão que há na terceira margem das giras, de um Riobaldo, Diadorim e outras personagens que se enveredam em mim. Não tenho bíblia literária a oferecer. Mas, pelo avesso, me catequiza, na medida em que me abisma, tudo o que proseia, em poesia pensante & pensamento poético, João Guimarães Rosa. Tudo o que escreve um buriti e o que, sem ser sobrenome, é rosa, mesmo as que não falam ao Cartola.

 

AC: Um autor marcante. Por quê?

IF: Poderia citar (tendo já citado acima) um nome do cânone, ou não, contemporâneos vários à espera de divulgação, reconhecimento, consagração, mas prefiro divulgar, reconhecer e consagrar a desumanização da noção de autoria e, expandindo-a ao deslimite, questionar a eleição de um criador antropomórfico, antropocêntrico, teocêntrico, pois aquilo-aquele-aquele que cria sempre-já precisa ser um criado pela força da criação, não substancial, não substantiva, não circunscrita a um sujeito, porque verbo de ligação: verbum, ou seja, ação, atividade de (des)ligação. No que a força criativa escapa a um centro, atrai-me o excêntrico das vias, dos envios, dos desvios: saber-me obra de seres vivos vegetais, animais, minerais. Obra de seres mortos-vivos. Seres vivos-mortos. De plasmas e plásticos, vidros e vírus, com e sem coroa, sendo e não corona. Concordando e discordando de Lavoisier, na natureza, nada se perde, tudo se transforma, mas também se transforma também com o que perde, com o que se perde e, portanto, marca-me o autor do autor de um autor, isto é, um não autor em cada autoria. É preciso aprender a ganhar a perda. Assim como, por ora, perco um nome em citação, um único nome de pessoa, poética, em excitação, para deixar marcante não só o memorável e, sim, o imenso esquecimento necessário: o que me contamina enquanto, a um só tempo, é por mim contaminado, marcado; ganhado quando perdido; perdido quando ganhado.

 

AC: Fale um pouco dos livros que já publicou até hoje.

IF: Todos eles falam um pouco do pouco que consigo falar diante do muito que nem posso publicar, por justamente não saber dizer. Apenas tentar e teimar. Todos são, nesse sentido, a tentativa e a teimosia de dizer, sem dizer; de dizer, para ainda estar por dizer. O teste obstinado da tese sempre obliterada por um excesso – de falta.

 

Macumbança,  de Igor Fagundes, foi lançado pela editora Penalux. Foto: Divulgação.

AC: Sei que você também escreve para teatro. Como avalia essa experiência?

IF: Já escrevi muito para o palco, mas hoje me dedico mais ao drama, ao teatro da página, muito embora a cena do poema, do ensaio, da literatura com frequência convoque a palavra escrita nas penumbras da linha, às ribaltas (nem sempre acesas) de um gesto cuja palavra é corpo todo voz: voz inteiramente corpo. Vale a recíproca da letra plena, em sua abstração de escritura, de corporeidade, carnadura.

 

AC: Projetos futuros: o que vem por aí nos próximos meses?

IF: Quem, durante e depois de uma pandemia, pode se atrever a prever e projetar o que vem por aí? Nós, ocidentais, temos uma relação com o tempo que, quando tido por passado, é apontado para trás. Apontamos o futuro para a frente. Para a frente é que se anda, dizemos. Mas… Se andamos, por tanto tempo, dentro de uma parada, muitas paradas, recolhimentos, também podemos parar na andança, em seu sutil movimento, e no sentido mesmo de parar para ver o movimento invisível, porque agora mesmo escapa. Algumas comunidades andinas, por exemplo, gestualizam o futuro com os braços orientados para as costas: o futuro não podemos ver. Está atrás. Com os braços para a frente remetem ao passado: ao que podem ver. O que vem por aí é sempre a memória a aprender, a sofrer, a cicatrizar e, a depender da intensidade das feridas do tempo, a esquecer-se ou a jamais se esquecer enquanto nos deixamos voltar para o que vem sem que a gente veja. Se o passado parece, então, de passagem, como um futuro no presente, o futuro do presente, ele – o presente – é sempre já, passando, passado: o passado que vem por aí avisar que pode haver, não haver, próximos meses. Gosto de passear pelos tubos de ensaio de um presente que ainda não é completamente (porque futuro) e, simultaneamente, já não é (porque passado). Misturar e agitar, em laboratório diuturno, os tubos do futuro e do passado, constituem o presente como estreia de ensaios. Talvez, seja por isso que me ocupo, neste momento e, quiçá, nos próximos meses, de divulgar meu mais novo livro de poemas (com outros sentidos mantidos em silêncio): tubos de ensaio. O décimo quinto pouso em voo solo. Mas participo de mais de cinquenta.

 

pensamento dança, de Igor Fagundes, foi lançado em 2018. Foto: Divulgação.

AC: Entre os seguidores do canal de Literatura do Portal ArteCult, muitos são aqueles que escrevem ou que desejam escrever. Que conselho ou dica você poderia dar a eles?

IF: Rilke, em Cartas a um jovem poeta, nos diz que “arte precisa ser coisa de necessidade e solidão”. Solidão, aí, não entendida como solipsismo, encapsulamento paralítico, mas comunhão com toda sombra nossa; a que se põe irrevogavelmente em nosso caminho e não podemos pular. Tal como disseram Píndaro e Nietzsche: “Vem ser o que tu és”. Vem ser o que sempre precisas ser. A literatura precisa ser a luz dessa e nessa sombra que a gente nunca pula. Eu diria a quem deseja produzir arte: tente fazer qualquer outra coisa que não seja escrever e veja se a escrita continua perfazendo sombra. Se, na obediência da fuga à literatura, esta for a destinação, à revelia, deflagrada, certamente alguém estará livre, não dela, mas livre nela, para sê-la e por sê-la.

 

AC: Para encerrar, pediria que deixasse aqui uma amostra de seu trabalho como autor.

IF: A palavra “amostra” me remete às testagens de meu mais novo livro de poemas: tubos de ensaio. Escrito entre o ensaio e o poema, e para além do binário, testo (digo: deixo em testagem e testamento) um texto de um passado que me parece presente. Afinal, o mais recente ainda é o mais longínquo. E, diante da pandemia da covid-19, o mais ausente permanece. Homenageio quem não cessa de chegar-me após partir. Ao completar quarenta anos de idade durante a quarentena, transcrevo, na festa e na fresta da herança, um poema escrito aos 20 anos, publicado e republicado em três livros: Sete mil tijolos e uma parede inacabada (2004); por uma gênese do horizonte (2006); pensamento dança (2018). Talvez porque tenha sido amostra, teste, o exame de poesia que não cesse, exame que segue sendo enxame. Em 2020, chamei e continuo chamando esse enxame, esse encante, de Macumbança.

 

POR UMA GÊNESE DO HORIZONTE

 

hoje quero amanhecer com os afogados

implorar que voltem a caminhar comigo

penteá-los como se evocasse filhos

abraçá-los como quem pede um chamado

 

hoje à tarde vou morrer com os afogados

engolir a água que invadiu suas sebes

me arder no sal que arranhou suas malhas

e arranhar as minhas com o que partiu suas pedras

hoje à noite vou salvar-me entre afogados

ler em seus olhos alguma paz em riste

embora nas pupilas ouça ainda

uma voz rouca para sempre dilatada

 

amanhã estaremos todos acordados

em mar profundo poderemos ser crustáceos

cavaremos até chegar ao mais escuro

ninho de pérolas e tudo será claro

 

para amanhã iluminar outro afogado

que na voragem de salvar-nos será salvo

e se unirá ao nosso fio interminável de corpos

sob o pôr/nascer do sol

 

e amanhã saberemos de que é feita

esta linha do horizonte:

de um pouco de água e muito de nada

lavando por dentro o peito dos mortos

 

Siga o autor:

@igorfagundes.oficial

 

Bem, é isso. Até a próxima!

 

César Manzolillo

Colunista do canal LITERATURA

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

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