CARMEN MORENO: a autora de Sobre o amor e outras traições é a convidada desta semana do AC Encontros Literários

 

Carmen Moreno (@carmenmoreno6061) é carioca, poeta e ficcionista (autora de contos e romances), membro do PEN Clube do Brasil, além de bacharel em Artes Cênicas e licenciada em Educação Artística. Recentemente, lançou Sobre o amor e outras traições, seu oitavo livro individual, pela editora Patuá.

Confira abaixo a entrevista exclusiva que preparamos pra você.

 

ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?

Carmen Moreno: A Literatura, sobretudo a poesia, é tão íntima da minha alma que tenho a impressão de que o gênero me acompanha há muitas vidas. Mas, especificamente nesta experiência terrena, meu contato inicial com a Literatura aconteceu na infância, através da oralidade. Mas esta resposta é ampla. Espero que tenham paciência (risos). Minha mãe, Carmen, contava muitas histórias, na hora de dormir, abraçada comigo. Eram lendas folclóricas que instigavam minha imaginação, fazendo-me associar a contação de histórias à paz e ao afeto – por mais terríveis que pudessem ser as tramas (risos), como a da menina enterrada viva pela madrasta sob um pé de figueira. Adorava também “Dona Baratinha e João Ratão” e “João e Maria”. Ela também cantava músicas gravadas por Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues e Ângela Maria. Quase sempre, lavando louça, com sua voz afinada, calorosa e doce. Aquelas canções, com letras poéticas, altamente originais, me faziam refletir e sonhar. Minha poesia tem uma musicalidade que surge desse contato inicial e perpassa toda a minha vida, abarcando os compositores e grandes poetas da MPB que me influenciaram mais tarde – entre eles, Chico Buarque, Cartola, Caetano, Fátima Guedes e Aldir Blanc. A Literatura também chegava através dos ditos populares que ela usava, espontaneamente, para nos educar, repletos de metáforas que me faziam decifrar enigmas. Ou seja, aprendia a pensar e a compreender a mim mesma e o mundo ouvindo a poesia da cultura popular: “Quem meu filho beija minha boca adoça”; “Quando um não quer, dois não brigam”; “A dor ensina a gemer”; “A verdade tarda, mas não falha”; “Nem tudo são flores”, entre tantos outros que coleciono, em um arquivo com mais de 20 páginas, para me lembrar dela e de mim mesma. Ou seja, a mãe estimulava, sem saber, a poesia do olhar que a menina lançava ao mundo. A música e os ditados me traziam simbologias que fomentavam minha imaginação e inteligência e contribuíam, com valores éticos e humanistas, para a formação da minha personalidade. Mas como a história é rica e longa, não posso deixar de citar o ponto crucial de revelação da Literatura na minha vida (essa janela ensolarada que se abriu e nunca  mais se fechou). Aos sete ou oito anos de idade, descobri a poesia do meu irmão Tanussi Cardoso. Levava para a antiga escola primária o único exemplar do seu primeiro livro e, ao final da aula, quando a professora abria espaço para nos expressarmos artisticamente, recitava um dos seus poemas. Gostava especialmente de “Conversa aos pés de um morto”. Segue um trecho: “Pronto, estás aí, podre/ A Morte te pegou tão de supetão, sujeito,/ que nem tiveste tempo de vomitar o último arroto sobre o teu terno sujo (…)”. Era uma experiência de leitura intensa e mágica para uma criança! O poema foi publicado muitos anos depois no maravilhoso livro Viagem em torno de (editora 7 Letras). Então, aos 14, comecei a escrever poesia. Tanussi, 13 anos mais velho do que eu, passou a ser meu crítico literário e grande incentivador, apresentando-me importantes poetas marginais, tais como Paulo Leminski, Réca Polletti, Cacaso e Leila Míccolis – com quem integrei, no início de minha carreira, o grupo performático Teatrote, juntamente com Eugenia Loretti e Tanussi.

 

Livros individuais e coletâneas: a produção literária da autora. Foto: Divulgação.

 

AC: Como é sua rotina de escritora? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?

CM: Todos os dias, mesmo que de forma indireta, me relaciono com a Literatura. Quando não estou escrevendo poesia ou prosa, leio. Publico vídeos e textos, divulgando meus projetos nas redes sociais, converso com meus pares sobre temas afins e, claro, sempre que possível, dou prosseguimento a um dos livros que estou produzindo. O meu próximo, de poesia, e o romance de autoficção, A casa da louca, que venho escrevendo há muitos anos, homeopaticamente. Meus livros de poesia, de uns tempos para cá, têm assumido naturalmente um espaço de liderança na minha produção e, consequentemente, na sequência de publicações que realizo. Mas adoro quando surge algum convite que me faça escrever disciplinada e diariamente. Isso não é frequente, que pena! (risos). Convites e prazos, ao contrário do que alguns escritores sentem, me estimulam e desafiam. Nunca vou me esquecer do telefonema que recebi, em uma tarde de 2003, da jornalista Denise Assis, idealizadora da coleção Elas São de Morte. Por indicação da querida e saudosa Vivian Wyler (gerente editorial da Rocco), ela me convidou para integrar esse projeto incrível, de romances policiais escritos por mulheres. Fiquei tão entusiasmada que escrevia de 12 a 13 horas por dia, quase sem parar. Cheguei a ficar com tendinite! Não havia um prazo específico, mas a proposta me mobilizou tanto que concluí o livro, O primeiro crime, em pouco mais de quatro meses. Ele foi muito bem acolhido pela editora e lançou a Coleção juntamente com as obras de Ateneia  Feijó e Ana Arruda Callado. Ou seja, minha rotina literária depende muito, entre tantas outras coisas, de convites (risos). Reescrever talvez seja mais prazeroso ainda do que escrever. A cada novo olhar sobre a forma, mergulho de maneira inédita nos sentimentos e ideias suscitados pelo texto inicial. Essa percepção renovada sugere outras maneiras de escrever. Consigo então enxergar o que deve ser cortado ou acrescido.

A escritora Carmen Moreno. Foto: Reprodução internet.

O escritor e jornalista já falecido, José Louzeiro, escreveu, na “orelha” do meu primeiro romance, Diário de luas (1995,  Rocco), um trecho que define bem meu imenso prazer em reescrever e burilar a linguagem: “Diário de Luas é um texto perpendicular, exaustivamente trabalhado, sem qualquer tipo de concessão (…)”. Antes de entregar um livro à editora, releio-o infinitamente e faço muitos ajustes, além dos que já realizei ao longo do processo. Quando se trata de prosa, costumo ouvir a opinião do meu querido e grande poeta, Tanussi Cardoso, só depois da obra concluída. Mas quando o livro é de poesia, ele acompanha quase todo o trabalho. Mantemos esse costume de troca humilde, franca e respeitosa na produção dos nossos livros. Participo também da elaboração dos seus, com críticas e sugestões.

 

 

AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?

CM: O inconsciente, esse precioso armazém de símbolos, sempre foi muito generoso com minha criação. Não tenho uma memória objetiva privilegiada, sobretudo quanto a datas, nomes, referências e lugares. Costumo dizer que minha memória é impressionista. Mas sentimentos e emoções se transmutam em palavras sempre que me disponho a escrever, ou quando algo precisa ser revelado a mim mesma. Meu inconsciente me mobiliza, com a força da inspiração, ou eu provoco seus arquivos sutis e atemporais. Signos ligados a tudo o que absorvo com a observação do meu universo pessoal, do meu semelhante, da vida, das relações e das artes em geral. Principalmente o cinema e a Literatura. Minhas imagens e meu ritmo narrativo têm uma ligação muito forte com o cinema. E quando se trata de inspiração, interrompo qualquer coisa que esteja realizando. A qualquer hora! Mesmo que seja apenas para fazer uma anotação. Isso acontece mais com a poesia. Surge uma palavra, uma cena, um sentimento intenso, e me deixo conduzir pela Mestra. Nada mais então importa. Minhas criações mais bonitas e orgânicas são resultado dessa ordem imperiosa que vem do desconhecido.

 

Coletânea de contos de Carmen Morena: análise crítica na imprensa escrita. Foto: Divulgação.

 

AC: O fantasma da página em branco: mito ou verdade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, o que faz para resolver esse problema?

CM: Conforme disse antes, meu inconsciente é muito generoso. Sempre experimentei sua fertilidade em várias manifestações da minha criação artística. Embora não seja profissional de outras áreas, pinto telas há muitos anos, faço customizações nas minhas roupas, óculos, brincos, crio vídeos, já fui atriz – ou tentei trabalhar nessa difícil área (risos); lecionei, durante muitos anos, Artes Cênicas para a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e fui aposentada recentemente. Ou seja, dediquei  minha vida inteira à arte. Mas sei que existem (e pode acontecer comigo) períodos de aparente aridez. Contudo, acredito que sejam apenas fases de descanso. Quando a mente organiza, de forma mais lenta e oculta, o material colhido – sentimentos, emoções, experiências e conhecimento em geral. Se nos assustarmos, tentando apressar o caminho, o medo pode fazer dessa lacuna algo crônico. Criar é libertação. Precisamos observar e respeitar nossos ritmos internos.

 

AC: Um livro marcante. Por quê?

CM: Citar apenas um será impossível, mas se me organizar cronologicamente, posso escolher alguns. Aos 11 anos, aproximadamente, meu irmão, José Barretto Cardoso Filho, me emprestou o livrinho As ideias de Freud. Fiquei fascinada com aquela estrutura básica de ID, Ego e Superego. A leitura despertou minha paixão pela Psicologia. Então, no início da juventude, li diversas obras de Gestalt Terapia e Bioenergética e comecei a fazer análise. Na adolescência, todas as produções da poesia marginal foram importantes para mim, conforme disse acima. No entanto, o romance A raiz e o vento, do escritor português Leão Penedo, está entre as obras mais marcantes da minha vida. Recentemente, importei um exemplar, pois queria saber se aquele fascínio ficaria restrito ao olhar de uma leitora de 14 anos. Para meu espanto e felicidade, o livro continua sendo uma das obras mais potentes, poéticas, humanistas e vibrantes que já li. Na verdade, acho que ele influenciou minha narrativa, que é subjetiva e intimista, centrada nos sentimentos dos personagens e em seus conflitos internos. Embora nunca em detrimento, claro, das ações externas que movem a trama. Quando li Infância, do Graciliano Ramos, fiquei encantada e me senti muito identificada com sua dor, pois também tive bastante dificuldade para aprender a ler. Ao menos com o método de alfabetização da época, que utilizava como base o livro A mágica do saber (se não me engano). A estrutura nos obrigava a decorar e repetir frases sem qualquer coerência, como “Vovô viu a uva”. O que significava aquilo, meu Deus? (risos). Já viram que sou das antigas, não é? E, quando li Infância, não pude deixar de me identificar com a dor do então menino Graciliano, ao se deparar com as pressões externas. A comicidade de uma cena, extraída, pelo gênio do escritor, do trecho a seguir, reitera minha concepção de que a arte, bem aproveitada, é pura salvação:

“(…) Eu não lia direito, mas, arfando penosamente, conseguia mastigar os conceitos sisudos: ‘A preguiça é a chave da pobreza – Quem não ouve conselhos raras vezes acerta – Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.’

Esse Terteão para mim era um homem, e não pude saber que fazia ele na página final da carta. As outras folhas se desprendiam, restavam-me as linhas em negrito, resumo da ciência anunciada por meu pai.

– Mocinha, quem é o Terteão?

Mocinha estranhou a pergunta. Não havia pensado que Terteão fosse homem. Talvez fosse. ‘Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.’

– Mocinha, que quer dizer isso?

Mocinha confessou honestamente que não conhecia Terteão. E eu fiquei triste, remoendo a promessa de meu pai, aguardando novas decepções (…)”.

Gostaria de citar também uma obra que me deixou literalmente sem ar: A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói. Fiquei asfixiada, a ponto de ter que interromper a leitura em determinado momento. Acho fascinante o poder de desorganização emocional, e até física, que uma obra desse nível pode nos causar. O personagem, enfermo e diante da morte, reflete sobre a banalidade de suas escolhas e sobre o vazio de sua existência. Sua solidão e angústia são atemporais. É uma novela extraordinária.

 

AC: Um escritor marcante. Por quê?

CM: Preciso citar ao menos alguns – um apenas não será possível (risos). Mas deixarei a maioria de fora da minha lista, inclusive meus contemporâneos, que leio e admiro. As minhas escolhas se devem à profundidade humana das narrativas ou dos poemas desses autores e à linguagem burilada, original, poética, densa ou provocante que suas obras apresentam: Clarice Lispector, Machado de Assis, Carolina Maria de Jesus, Rubem Fonseca, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Leão Penedo, Nikolai Gogol, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Manoel de Barros, Ivan Junqueira, Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Lêdo Ivo, Rita Moutinho, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Emily Dickinson, entre tantos outros (as), incluindo Nélson Rodrigues, dramaturgo que me influenciou bastante, com sua crítica ácida da hipocrisia  e da neurose nas relações familiares e sociais.

 

AC: Fale um pouco a respeito de seu mais recente lançamento literário, Sobre o amor e outras traições.

CM: O livro surgiu gradualmente, ao longo de um processo de separação que culminou em um divórcio. Embora não seja autobiográfico, parte de uma experiência pessoal transformada em conteúdo universal – já que somos semelhantes, e a poesia é a terra do encontro. É composto de cinco capítulos: “O fim”, “Mudança de pele”, “Incêndios”, “O amor (que não traiu)” e “Outras traições”. Cada seção, embora imprima unidade ao livro, projeta um olhar específico sobre o amor, a morte, as traições e a dor existencial, incluindo o do último capítulo, que aborda o feminicídio. Mas não é um livro pessimista, ao contrário! Costumo abrir janelas para a luminosidade, embora minha criação tenha uma atmosfera densa. Esse meu oitavo livro solo, publicado em 2021 pela editora Patuá, registra textos de apoio magníficos, que me deixaram muito feliz e honrada, escritos por Cecilia Costa, Constância Lima Duarte, Tanussi Cardoso e Antonio Carlos Secchin, que escreve em um trecho da contracapa: “(…) Carmen Moreno se enlaça às lições de Baudelaire, para quem a missão do escritor é transformar a dor em arte – que não cessa de doer, transfigurada, porém, pela fulguração da beleza. Dor e beleza que transbordam de muitos corpos e de muitos versos que compõem Sobre o amor e outras traições”.

 

Sobre o amor e outras traições: o lançamento mais recente. Foto: Divulgação.

 

AC: Você escreve romance, conto e poesia. Alguma preferência por um desses  gêneros?

CM: Essencialmente, sou uma poeta. O espírito da poesia é nítido na minha prosa. Trabalho por horas um parágrafo antes de prosseguir. Burilar a linguagem é um extremo prazer, que vem do exercício da minha produção poética. Não a forma pela forma (como vitrine ou casca), mas a forma a serviço do que houver de mais verdadeiro, orgânico e essencial em determinado conteúdo.  Não tenho pressa, minha criação é lenta. Gostei de ouvir o querido escritor Antônio Torres dizendo algo semelhante em entrevista a este mesmo projeto. Quando escrevo contos, sinto que a poesia se espreguiça e se amplia. E nos romances, ela também está presente: na construção da trama e das ações físicas e no olhar que lanço sobre os conflitos internos dos personagens. Jamais seria escritora se pudesse apenas contar histórias, narrar fatos, descrever cenários e ações externas. Meu interesse pelo ser humano, por sua complexidade, contradições e intimidade, é a tônica da minha criação. A poesia começa no olhar.

 

O primeiro crime: romance policial de Carmen Moreno. Foto: Divulgação.

 

AC: Projetos em andamento: o que vem por aí nos próximos meses?

CM: Estou escrevendo três livros bem lentamente. Mas, como disse antes, a poesia sempre sai na frente e faz o gol (risos). Estou finalizando meu novo livro de poemas, cujo título, Que venham os pássaros, é provisório. Pretendo entregá-lo à editora ainda neste ano. Também estão em fase de criação um livro de contos, ainda sem título, e o romance de autoficção A casa da louca, citado acima, que faz uma referência ao maravilhoso  livro da escritora Rosa Montero, A louca da casa, embora não tenha ligação com ele em termos de conteúdo. Aborda a experiência, marcante e dolorosa, de ter convivido com minha irmã, Gley, que sofria de esquizofrenia e esteve muitos anos internada em um hospital psiquiátrico.

 

AC: Para encerrar, pediria que deixasse aqui uma amostra de seu trabalho como autora.

 

POEMA PARA MARIELLE FRANCO

Na calada da noite

calou-se a voz (tocaia).

Toque de recolher a vida.

Ávida, a mulher realçou rostos invisíveis:

despenteou a brisa, desabrigou mentiras,

soprou ventanias no marasmo.

Não a morte! Não há morte,

só sementeiras.

Nenhum bem se aterra

se o gesto fértil se espalha,

e a língua é espada e espanto.

Nenhum carrasco tomba

o canto indomável das sílabas,

nem turva o clarão do sorriso.

Não há terror que impeça

o orvalho nos desertos.

 

MOVIMENTO

Nenhum fim é fato.

Toda morte é apenas

hiato.

 

SINA

Isadora Duncan morreu em movimento.

Em nenhum momento deixou de dançar…

 

 

SOMBRAS

Uma tristeza que não se revela,

indecifrável. Presságio?

Uma tristeza velada velando o dia.

Uma tristeza como o peso de um trem:

a dor submissa dos trilhos.

 

TODAS AS MANHÃS

Despertar é vitória infinda,

a qual o orgulho humano não brinda,

por julgar rotineiro e certo o descerrar das pálpebras.

Por conceber ato consumado a sorte da hora:

a verve rara de Deus rimando vida e aurora.

 

NÚPCIAS

Planejo te levar para a terra do sim,

onde o fim não tenha nascido,

e o amor seja planta de seca,

que nunca tenha morrido.

 

REMORSO

Onde enterrar os beijos que não dei e quis?

Que luto lavará a dor do amor que não fiz?

 

FUMAÇA

Quando o amor morreu foi só uma dor a mais.

Já corria pela casa um cheiro de corpo apodrecido:

a carne da alma desintegrando-se,

na cama do quarto, entre dois travesseiros.

 

ALMAS

para Rosane

No teu abraço me reencontro com o mais antigo de mim:

o que perdi na primeira vida – ainda verme,

o colo da mãe primeva,

a parição do espírito no útero da caverna,

a paz esquecida no silêncio da Terra,

o que existia antes de Deus.

 

CURA

Que a arte me desarrume.

Densa, me desarranje.

Assombre o meu déjà vu,

Alcance-me aonde não fui,

me enxergue o que não vi.

Minha face ao tapa do belo,

a alma ao chicote – gemido indolor.

Arte: espinho para as zonas mortas – amor.

O sol árduo da revelação,

sombras saltando de baús – salvação.

 

O TEMPO DO AMOR

Não tenho âncora no passado,

nem como pão requentado na mesa do amanhã.

As fotografias não doem.

Esvaziadas todas as palavras prometidas ao eterno.

O tempo lava os ponteiros dos segundos,

atualiza dores, desejos, e desbota mágoas.

Aportam-se e partem tantos personagens

no cais do amor!

Ninguém preso aos meus passos,

sob meus pés, pisoteando meu prumo.

Passado não tem fôlego para seguir alegria:

É terra dos mortos.

 

VISITA

para meus amigos

O amigo esteve aqui.

Histórico e inédito feito a lua.

Veio com Deus e um vinho.

Vimos lugares invisíveis.

Gargalhadas singraram a noite ao infinito.

O amigo sempre devolve o chão quando a vida é desterro.

E se a dor me envelhece e o abismo me escolhe,

colho um amigo no jardim do socorro, e não morro.

 

 

O projeto AC Encontros Literários venceu o troféu APPERJ (Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro) 2021 na categoria Encontros Literários on-line.

 

Bem, é isso. Até a próxima!

 

César Manzolillo

Colunista do canal LITERATURA

Clique abaixo para ler as demais entrevistas exclusivas do projeto!

Não deixe de ver também:

LIVES
AC Encontros Literários

AC Encontros Literários tem curadoria e apresentação (lives) de César Manzolillo (@cesarmanzolillo).

 

 

 

 

 

Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

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