DÉCIO TORRES CRUZ: o autor de Histórias roubadas é o convidado desta semana do AC Encontros Literários

O escritor Décio Torres Cruz. Foto: Reprodução redes sociais.

 

Décio Torres Cruz (@torres_decio) é escritor, crítico literário, poeta, professor, pesquisador da UFBA e da UNEB e membro da Academia de Letras da Bahia, onde ocupa a cadeira número 19. No ano passado, lançou o livro de poemas Paisagens interiores, já traduzido para o italiano.

Confira abaixo a entrevista exclusiva que preparamos pra você.

 

ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida? 

Décio Torres Cruz: Meu contato com a literatura se deu na escola primária, com professoras me presenteando livros e me emprestando livros da biblioteca da escola e de sua biblioteca particular. Depois, meu irmão mais velho, que sempre gostou de ler e também se tornou escritor, hoje membro da Academia Brasileira de Letras, também me enviava muitos livros. Fui morar com ele na adolescência e passei a conviver com muitos escritores seus amigos.

 

AC: Como é sua rotina de escritor? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?

DTC: A rotina varia muito, às vezes escrevo todos os dias, às vezes paro e retorno, outras vezes somente quando bate inspiração. Escrevo todos os dias, mas não necessariamente literatura, às vezes escrevo ensaios e artigos. Hoje, quase todo mundo escreve todos os dias nas redes sociais, essencialmente não escrita criativa. Se eu me propuser a escrever algo, não importa o gênero, fora as pausas normais para alimentação e outras atividades, só paro quando acabo de escrever o texto. Divido o tempo de minha escrita com muita leitura (sou um leitor compulsivo, às vezes chego a intercalar a leitura de dois ou três livros ao mesmo tempo), assistir a filmes e peças, ir a museus e outros tipos de lazer. Também reescrevo muito, pois toda vez que lemos aquilo que escrevemos, sempre encontramos algum problema a corrigir, algo a acrescentar. Na verdade, o texto só fica mesmo pronto quando publicado e, mesmo assim, pode ser modificado em novas edições. Raramente mostro meus textos a amigos antes de publicados, mesmo assim escolho um ou outro quando quero ouvir uma opinião e nunca mostro o conjunto da obra, a não ser ao revisor ou revisora.

 

AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?

DTC: A inspiração vem de várias fontes, ela pode vir de algo que você viu ou leu, uma frase que ouviu, um acontecimento que presenciou, uma história que lhe contam, parte de história pessoal, familiar ou de amigos, um poema, um filme ou, até mesmo, uma piada. Tudo é motivo de inspiração para escritores criativos, inclusive os sonhos. Escrevi dois contos baseados em vários sonhos que tive.

O livro Paisagens interiores foi lançado no ano passado pela editora Patuá. Foto: Divulgação.

 

AC: O fantasma da página em branco: mito ou verdade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, o que faz para resolver esse problema?

DTC: Isso varia muito de autor para autor. Realmente, nunca vivenciei esse problema como algo assustador, pois, como escrevo muito desde pequeno e tenho muita prática da escrita, desenvolvi determinadas técnicas que utilizo naturalmente e não me desespero. Quando estanco em alguma parte do que estou escrevendo, dou uma parada para refletir sobre o assunto, o personagem, o enredo, ou o verso, vou pesquisar sobre o tema e daí, quando volto ao texto, já sei por onde dar continuidade. Cada escritor tem a sua estratégia que a ela sempre recorre nessas horas, mas há pessoas que estancam e levam muito tempo para conseguir retomar, por isso não acho que seja um mito.

O livro Paisagens interiores foi lançado na Itália. Foto: Reprodução redes sociais.

 

AC: Um livro marcante. Por quê?

DTC: Difícil enumerar apenas um, pois adoro vários. O nome da rosa, de Umberto Eco; Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso; O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago. São livros que me marcaram bastante pelos seus temas e por sua linguagem e que sempre sinto vontade de relê-los.

 

AC: Um escritor marcante. Por quê?

DTC: Na literatura estrangeira, William Shakespeare, quem quer que tenha sido o autor de sua obra magnífica, já que muitos questionam a autoria do homem nascido em Stratford-upon-Avon. Ele conseguiu descrever com muita astúcia e sabedoria a alma humana e seus labirintos mais secretos, além de ser um mestre com os jogos linguísticos e trocadilhos que faz em língua inglesa, seja em suas peças ou em seus sonetos. Na literatura brasileira moderna, Guimarães Rosa, pelo seu trabalho criativo com a língua e com o universo e as imagens poéticas que criou em sua ficção. Na literatura brasileira contemporânea, Itamar Vieira Junior, por fazer de forma atual exatamente aquilo que Rosa fez com a linguagem, com um estilo bastante criativo e poético. Todo autor que, além de narrar uma boa história consegue fazer isso de forma inusitada e poética, sem vícios ou clichês, tem o meu maior respeito e admiração.

 

AC: Na sua opinião, que características um bom conto deve apresentar?

DTC: Para mim, um bom conto ainda deve seguir algumas das premissas descritas há séculos por Edgar Allan Poe na sua “Filosofia da composição”, que ele escreveu sobre o processo de composição de seu poema “O corvo”, mas que podemos aplicar ao conto: um bom conto deve ter o tamanho suficiente para ser lido por inteiro, “de uma sentada”, para que não se perca o tom, a totalidade ou a unidade de efeito pretendida pelo autor. Acrescento a isso a originalidade na construção da história, o uso da linguagem e as técnicas narrativas, sem a recorrência a clichês desgastados. Um bom conto deve surpreender o leitor, não só ao final, mas durante seu processo narrativo, no modo como o autor trabalha com o tema e varia suas técnicas narrativas, deixando a marca de seu estilo. Um bom conto deve fazer o leitor refletir sobre o que acabou de ler e deixá-lo com gosto de quero mais.

 

AC: Fale um pouco sobre Histórias roubadas, seu mais recente lançamento literário.

DTC: Publicado pela editora Penalux (2022), o livro possui 22 contos bastante criativos, reflexivos e divertidos sobre temas diversos, com personagens inusitados e cenários de diferentes cidades do Brasil e do exterior e uma estrutura bastante diversificada. Conta com a apresentação da orelha do escritor Lima Trindade e texto da quarta capa escrito pela premiada escritora portuguesa Teolinda Gersão. O livro mescla técnicas de diversos gêneros literários, brinca com diferentes modalidades discursivas, passeia pela poesia e pelo teatro e por estilos literários diversos tão característicos da literatura pós-moderna e suas vertentes pop e cinemática. Tendo como mote o roubo e a escrita de histórias, alguns dos contos se intercalam num interessante jogo intertextual. Algumas histórias brincam não só com a tradição literária de diversos países, mas também com os finais de alguns contos, envolvendo o leitor e convidando-o a participar do processo criativo, deixando-o eleger sua própria conclusão. Alguns dos contos apresentam tons poéticos, como “As fronteiras do encantamento” e “A lua sobre as veredas tropicais”. Outros passeiam pela crônica e narrativas de viagem, como “Margô e seus sonhos postergados” e “As tias”. Uns tratam de questões históricas, filosóficas e existenciais, como “Sobre ondas e bancos de areia” e “Estradas possíveis e as trilhas não percorridas”. Outros, como “Aula de português”, “A aluna deslocada e tresloucada” e “Zuleica, minha irmã” exploram o humor e a diversão em meio a discussões de temas contemporâneos e de linguagem. Mistério e aventura são encontrados em “O ladrão de histórias”, que inspirou o título, “O mistério dos jogos mentais” e “Era uma vez uma cidadezinha”. Técnicas cinematográficas são utilizadas na construção de “Um dia na periferia da vida”, que enfoca a violência urbana diária nas nossas metrópoles. A descoberta do ser e do sexo na adolescência é abordada em “A avó do Wesley” e em “O caso do psicólogo”. Um gênero híbrido de peça teatral e conto é criado em “A divina tragédia humana” e nos contos engraçados escritos sob forma de diálogos. Há, ainda, questões políticas numa história que metaforiza a criação de estados totalitários sob a perspectiva de uma criança, histórias de amor possíveis e impossíveis, jogos e apropriações da tradição literária e brincadeiras com a metalinguagem narrativa quando um personagem se insurge contra o seu criador. Por todas essas histórias, perpassa uma grande ironia que caracteriza a voz narrativa nas discussões sobre gênero, identidade e a existência humana. Há, também, uma contundente crítica aos preconceitos encontrados na moral de hábitos e costumes hipócritas vigentes em nossa sociedade, quando personagens tentam compreender o universo à sua volta na busca de um significado para o absurdo existencial que a vida às vezes nos impõe. O livro envolve o leitor com perguntas que nos acompanham até o final da leitura de cada conto, fazendo-nos refletir sobre essas questões, escolher o melhor desfecho para algumas das histórias, ou simplesmente, dar uma boa gargalhada. O resultado é pura reflexão, poesia e divertimento. Embora eu tenha passeado por diferentes temas e experimentado técnicas variadas, há um fio condutor que une alguma das histórias em torno do tema do roubo de histórias, seja através do próprio roubo real, como o da primeira história que deu nome ao livro, seja de forma metafórica, como histórias extraídas de minha imaginação e mescladas a partes de histórias que vivi, li, ou ouvi ao longo da vida e das quais a ficção se apropria e transforma no cadinho da fabulação. O escritor Lima Trindade, que escreveu a orelha do livro, percebeu claramente essa conexão. E, por acaso e sem que ela soubesse, o título me foi fornecido pela escritora Teolinda Gersão, autora do texto da quarta capa, que assim intitulou o assunto de uma mensagem de e-mail enviada para mim, referindo-se às histórias que, a princípio, eu havia denominado “O ladrão de histórias”, como o título do conto que abre o livro.

Histórias roubadas é o mais recente lançamento literário. Foto: Divulgação.

 

AC: Projetos em andamento: o que vem por aí nos próximos meses?

DTC: Já estou com um novo livro de contos em andamento e outro de poesia, que deverei lançar no primeiro semestre do próximo ano.

 

AC: Entre os seguidores do canal de Literatura do portal ArteCult, muitos são aqueles que escrevem ou que desejam escrever. Que conselho ou dica você poderia dar a eles?

DTC: Não existem fórmulas nem receitas para a boa escrita. A dica inicial é leia muito, mas leia bastante antes de começar a escrever, principalmente no gênero no qual pretende se destacar. Se você quer ser um bom poeta, leia muita poesia e assim por diante. Uma boa escrita resulta de tudo aquilo que você leu antes de começar a escrever. O velho ditado “quem lê bem, escreve bem” ainda prevalece. Não se constrói nada sólido sem um bom alicerce. Depois de ter adquirido uma boa bagagem de leitura, comece a escrever e crie o hábito diário da escrita. Evite clichês e repetições de palavras e ideias no mesmo parágrafo. Releia e revise cuidadosamente e criticamente o que você escreveu, como se estivesse lendo um texto escrito por outra pessoa, sem pruridos ou medo de apagar palavras, frases, ou parágrafos que não estejam bem desenvolvidos. O escritor deve sempre ter por meta a alcançar se igualar ao nível dos bons autores que leu e, por objetivo de excelência, superar todos eles. Quando achar que o texto está pronto realmente, submeta-o a um bom profissional de revisão antes de submetê-lo à editora.

 

AC: Para encerrar, pediria que deixasse aqui uma amostra de seu trabalho como autor.

DTC: Aqui está um dos poemas de meu livro Paisagens interiores (Patuá, 2021):

 

O Outro

 

A Italo Calvino.

 

Se numa noite de inverno

teu olhar ficar grudado a uma máquina

destruidora do silêncio

em um espaço sem sombras

que entorna música,

 

Se num dia de verão

a parede da escuridão te fizer fronteira

revelando um “você” mais estranho que o seu

como um viajante que perdeu uma conexão

e jaz inerte no cemitério das horas perdidas,

 

Se numa noite estrelada

ansiares por nadar contra a corrente do tempo

fingindo apagar as consequências de certos momentos

tentando recuperar uma condição inicial

que te levou a partir,

 

Descobrirás

uma torrente de novos acontecimentos

quanto mais te afastares do momento zero,

pois não conseguimos amar ou pensar,

exceto em fragmentos de tempo

que ao serem atirados ao vento

percorrem sua própria trajetória

e imediatamente desaparecem.

 

Se um dia você

se encontrar perdido em uma terra estranha

onde uma estação de trem é o único ponto de contato

com o resto do mundo

saberá que você

parou os relógios

e reverteu o tempo.

 

 

Então,

e somente então,

serás capaz de encontrar o outro “você” deixado para trás

Ele virá com um sorriso matreiro sobre o rosto

te fará um aceno

e passará.

 

Pela primeira vez

em tua vida fugidia

te sentirás sozinho

enquanto a imagem daquilo que uma vez te constituiu

vai embora, fugindo de ti.

 

Se numa tarde de outono você chorar,

é a lembrança do você que ficou para trás

em uma cidade invisível.

 

 

O projeto AC Encontros Literários venceu o troféu APPERJ (Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro) 2021 na categoria Encontros Literários on-line.

 

César Manzolillo

Colunista do canal LITERATURA

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LIVES
AC Encontros Literários

AC Encontros Literários tem curadoria e apresentação (lives) de César Manzolillo (@cesarmanzolillo).

 

 

Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

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