Às quartas – Musa

Foto: Elia Pellegrini em Unsplash

 

Carina andava pela cidade como celebridade, expondo sua beleza cinematográfica. Misturava-se com as pessoas, frequentava os mercados e padarias, posava para selfies com os fãs Seu sorriso não tinha ruga. Seu corpo não carecia reparos.

Foi por acaso que José descobriu o seu segredo. Fumando um cigarro no píer próximo à casa da atriz que namorava, viu, espelhados na água, os contornos da musa da cidade. Todo homem da cidade sonhava com Carina. Com desejo e, também, encanto.

Sozinho àquela hora da madrugada, José não fez cerimônia em ser indiscreto, íntimos que já eram nas primeiras semanas de namoro. A lua riscava no mar a imagem de Carina tirando seu vestido. Virou-se e procurou a janela onde ela estaria, entre as luzes dos prédios e das casas ao redor. Carina estava na que tinha a luz apagada, sendo denunciada pelo vestido debruçado sobre o parapeito.

O rapaz subiu o muro entre os prédios e o píer, sabendo-se esperado pela amada. Surpreendeu-a no instante em que se virou nua, de frente. Foi quando ele viu as cicatrizes. A mutilação escondida sob os enchimentos da roupa, a doença acobertada pelo glamour das notícias sobre o novo filme. Culpado, José virou o rosto. Na água, viu, novamente, o contorno perfeito da mulher: as curvas, os cabelos emoldurando o corpo até a altura do ombro. Olhou, de novo, para a janela de Carina, com o desejo ultrapassado pela ternura.

Foto: Miles Peacock em Unsplash

Tirando a maquiagem em frente ao espelho, ela sentiu o olhar de José sobre seus ombros. Ao vê-lo no muro, seu impulso foi esconder as cicatrizes com as mãos. Depois, a nudez. José pôs o indicador sobre a boca, num gesto de silêncio, e mandou um beijo delicado para Carina. Ela se encolheu, envergonhada. Ele passou às grades que levavam à janela. Acariciou o rosto da atriz, as olheiras despidas de corretivo. Beijou sua testa. Cobriu-a com o casaco que trazia amarrado à cintura. Abraçaram-se, confidentes, sem terem-se dito uma só palavra.

Desceu à rua, apagou o cigarro no chão, acenou para Carina em despedida. Quando ele chegou à esquina, ela chorava. Mas a noite escondeu suas lágrimas.

Pela manhã, Carina desceu as escadas com um vestido estampado, uma maquiagem leve e um sorriso ensaiado em frente ao espelho. Passaria o dia esperando por José.

À noite, quando ele voltou ao píer, ela desceu, sentou-se a seu lado e agitou levemente a água com os dedos do pé. O que aconteceu, sobre o que falaram, ninguém, além deles, soube. Pequenas marolas turvaram todos os reflexos daquela noite.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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