Às Quartas – A culpa é do Roberto

 

Luciana estava presa naquela situação. Havia muito, Dario adiava os planos de casarem-se. Uma dívida nova, um financiamento antigo, os pais precisando de ajuda, um emprego melhor depois do curso no SENAC. Ela sabia: tudo que ele precisava, já tinha. Sexo amoroso, almoço temperadinho no fim de semana, quem cuidasse dele em dias de febre.

A boa vida do namorado acabaria quando Roberto Carlos chegasse à cidade, no dia do aniversário de Luciana. Ela se achava a fã número um. Foi ninada pela avó com as canções do cantor. A mãe a batizou com o nome de uma das filhas do ídolo. Sonhava assistir ao show, abraçada ao namorado, sob céu aberto, no estádio de futebol em que Dario jogava, adaptado para o espetáculo. Ele, em dívida eterna, concluiu que assistir ao Roberto era um gesto de amor mais barato do que uma viagem comemorativa, a outra opção.

Luciana se vestiu de azul, combinando com o Rei. Maquiou-se caprichadamente. Ensaiou com Nadir umas indiretas a Dario. O campo de futebol talvez fosse o lugar perfeito para um pedido de casamento. Show romântico, aniversário, luar, campo de futebol. Só bastava Dario marcar o gol.

Começou a chover e venderam-se capas de chuva descartáveis. Luciana quis uma mas Dario decidiu esperarem a chuva passar. Opinou, num momento de estio, evitando desperdiçar ainda mais com o programa. O ingresso fora caro. A falta de estacionamento no arredor os obrigou a pegarem um taxi. Já tinha investido muito.

Luciana protegeu o rosto. Se houvesse algum pedido, não queria aceitá-lo com o rímel borrado. Alegrava-se, imaginando: dançariam no meio da multidão, sob a chuva, as luzes do palco ao fundo, a voz do Roberto preenchendo o silêncio.

O cantor entrou, ovacionado. Dario gargalhou: “Mulher é um bicho muito doido. Acredita nesse papo melado”. Roberto cantava os versos da  canção preferida de Luciana, ideal para a noite esperada: “E a noite as estrelas no céu/estarão sorrindo/Olhando pra nós e dizendo/Como esse amor é lindo/Tão lindo…”. Luciana viu o céu sem estrelas, as nuvens pesadas. Dario ria dos memes no celular.

Foto: Kelly Sikkema em Unsplash

À sua frente, um casal se pôs a dançar. Usavam capas de chuva de nylon, duráveis. Viviam o sonho dela. “Haja o que houver/Nada vai mudar…” Luciana não reteve as lágrimas, disfarçadas na chuva. Nada mudaria, pensou. Nada mudou desde o início. E seu peito se gastou nessa constatação. As músicas seguintes foram chibatas. As promessas de eternidade do amor. O homem perdido sem a amada. Noites tórridas vinculadas ao desespero da separação. “Por que me fez acreditar?”, disse.
“O quê?”, Dario reagiu. Luciana abaixou o olhar. Ele não. Dele, só recebera despromessa. “Você, não. O Roberto”. Dario não entendeu e não se interessou. Voltou às mensagens do grupo do churrasco. Se não ficasse atento, sobraria para ele, no rateio das funções, levar as carnes mais caras.

O show chegou ao final. Luciana deixou cair a seu lado uma rosa beijada pelo ídolo. Dario apontava a saída do estádio. “Melhor irmos logo, antes que esse povo todo queira pegar taxi também. Vamos?” Luciana foi, de mãos dadas, navegando entre as palmas. O coro cantava “Jesus Cristo”. Já não se ouvia Roberto.

Luciana e Dario caminharam rentes ao palco. Roberto, em direção à coxia, com as mãos acenando adeuses. Bem próximos, afastados pela altura do palco, Luciana sentiu uma dor crescer e gritou: “A culpa é sua, Roberto!” A orquestra se sobrepôs a sua voz e o cantor saiu, indiferente ao seu sofrimento. “Foi você que fez isso comigo! Você me fez acreditar!”. Envergonhado, Dario puxou Luciana.

Agora, ela amanhece sozinha. Proibiu o ex de procurá-la. Doou os vestidos azuis; prefere tons escuros. Pede comida aos sábados para não ter que cozinhar. Mas não quis dar os discos de Roberto Carlos a Nadir, quando a amiga lhe pediu. Preferiu guardá-los na parte alta do armário.

A culpa é do Roberto por fazê-la acreditar. Mas vai que, lá no fundo, o Rei tem razão.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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