Às quartas – Tigresa

Foto: Vidar Nordli-Mathisen em Unsplash

 

O frio da manhã entrou no quarto, pelas frestras da construção. Tide se encolheu sob as cobertas mas os pés e as mãos estavam gelados e roubaram seu conforto. Enrolado no edredom, levantou-se para aquecer o fogo.

Viu, pelo vitrô, Estela caminhando descalça no gramado em volta do casebre. As mãos para o alto, as unhas compridas e negras, os mamilos discretamente evidenciados pelo sol que atravessava a camisola com estampa de tigre. Uma fera no mato, ele se riu, enquanto a chaleira avisava a ebulição da água.

Estela veio, atraída pelo cheiro do café. Avançou, beijando o dragão no braço de Tide e enfiando as mãos na calça do pijama dele.

– Espera. Nem tomei café ainda.

Estela o provocou. Sinuosamente, invadiu o edredom e pode tocá-lo inteiro, pressionando seu corpo contra o dela. A pressa de quem sabe que a maior parte da vida já passou.

– Não prefere tomar café depois?

Tide se excitou naturalmente. Aproveitou o sexo fácil. Embora estivesse incomodado por perder o fio dos seu planos. Pela manhã, sempre fazia abdominais e corria. Estela inventara uma viagem para o mato, longe das ondas, atrapalhando seus treinos para o campeonato de surf.

Mas ele quis permitir-se. Mergulhou as mãos no cabelo dela durante o beijo. Deixou ela roçar os seios em seu tórax. Deitaram-se, misturando pernas e lençóis, enquanto o café esfriava. Passaram a manhã inteira embolados.

Foto: Dainis Graveris em Unsplash

 

– Te conheci numa boate! Nunca pensei que você fosse de natureza – ele disse.

– E eu não imaginava que você era de mar. Achei que fosse de lua.

– A gente devia ter ido para um lugar com praia…

– O mato… Pisar na terra tem uma energia, sabe?

E recomeçaram. Num dia esvaziado de acontecimentos, a vida fervia entre as paredes do quarto pequeno no chalé alugado. Estela se abrigava no colo do amante, contando histórias de quando era mais jovem. Tide a escutava mas distraído, observando a construção.

– Não deve ser difícil construir uma casinha assim, de sapê.

– Sem alicerces qualquer um constrói.

– Mas basta uma chuva forte…

– Por isso, gato, só vou onde há sol.

Tide fixou o olhar nas telhas no teto, sentindo a pressão do silêncio. Estavam isolados. Segundo dia sem treinos. Terceiro dia sem mar. Numa casa sem alicerces. As feras, como as ondas, não se deixam domar.

Estela foi banhar-se. Tide se alimentou. Se olhassem para o céu, veriam a chuva se aproximar. Mas insistiram em navegar até o prazer acabar.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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