Ana Margarida Mignone (@anamargaridamig) é carioca, professora de Línguas e Literaturas Portuguesa e Inglesa, tradutora e revisora (com publicações no Brasil e na Espanha). Membro da União Brasileira dos Escritores RJ, é autora de obras para adultos e crianças, tendo sido premiada por livros e textos infantis em Brasília, São Paulo e Recife, no Rio de Janeiro e no Pará. Atualmente, unindo suas trajetórias como professora e escritora, dedica grande parte de seu tempo à escrita e ao desenvolvimento de atividades literárias em creches e colégios.
Confira abaixo a entrevista exclusiva que preparamos pra você.
ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?
Ana Margarida Mignone: Bem, talvez tenha sido ao contrário… Eu é que tenha entrado, e de cabeça, na literatura, desde muito cedo. Minhas primeiras memórias de vida já envolvem livros, histórias, mais adiante um pouquinho, diários, depois a decisão pela faculdade de Letras… E daí por diante… O tempo só fez intensificar essa minha paixão.
AC: Como é sua rotina de escritora? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?
AMM: Na verdade, nunca consegui estabelecer uma rotina como escritora. Sempre trabalhei muito como professora e escrever literatura era uma atividade que exercia quando as obrigações me permitiam. Hoje, com mais tempo, consigo me dedicar muito mais à escrita, embora não seja muito dada a rotinas, mas sim ao que o coração manda. Então, se estiver voltada para um livro, vou pular da cama para o computador e ficar lá todo o tempo que for possível. Quanto a reescrever… O tempo todo, ao longo de todo o processo, depois que termino e assim por diante. Uma das coisas mais difíceis para mim é achar que o livro está pronto. E quanto a mostrar o texto durante o processo, não é tão comum. É mais fácil eu mostrar para minhas filhas ou para alguns amigos quando já estou em processo de finalização. Mas ao longo dos dez anos em que eu e Marcus Vinicius Quiroga vivemos juntos, tudo, absolutamente tudo que eu escrevia, ia imediatamente para ele. Aliás, como tudo que ele escrevia vinha imediatamente para mim também. Foi, sem dúvida alguma, o meu grande mestre e parceiro literário.
AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?
AMM: Essa resposta é bem clara para mim: da vida. De tudo que eu vivo, de tudo que eu vejo, de tudo que eu imagino e sinto a partir do que vejo. A fantasia, a criação, tudo surge a partir do real. Com exceção apenas de alguns episódios, quando sonho e acordo com frases, títulos, versos ‘‘prontos’’ na cabeça. Não me considero, de modo geral, uma pessoa imaginativa ou criativa dentro de um âmbito de fantasia.
AC: O fantasma da página em branco: mito ou verdade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, o que faz para resolver esse problema?
AMM: Com certeza, eu só trocaria a expressão página em branco por coração em branco. Há momentos em que simplesmente não há nada dentro de mim para ser transformado em palavras. No meu caso, como não tenho necessariamente prazos a cumprir, simplesmente espero a necessidade de escrever se manifestar novamente (o que normalmente não demora muito para acontecer).
AC: Um livro marcante. Por quê?
AMM: É muito difícil citar UM livro marcante, mas vou escolher o primeiro livro do Marcus Vinicius Quiroga que eu li: Campo de trigo maduro. Minha primeira leitura desse livro foi realmente um dos momentos literários mais impactantes da minha vida. Nunca encontrara até então tamanha identificação com o que estava lendo, tanto quanto ao conteúdo como quanto à forma. Foi algo muito mágico. Parecia que eu estava em uma outra dimensão. E foi tão mágico mesmo que, a partir desse momento, nos unimos para sempre.
AC: Um escritor marcante. Por quê?
AMM: Mais uma vez, bem difícil falar de UM só. Adoraria citar Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, José Luis Peixoto, Rosa Montero, entre incontáveis outros. Mas resumirei tudo no Quiroga novamente. Marcus foi meu grande mestre literário. Foi lendo sua obra, acompanhando seu processo de escrita, no dia a dia de nossa convivência, dividindo ideias, dúvidas e projetos todo o tempo, que pude enxergar realmente todo o mistério, o suor e a grandeza que existe nessa arte.
AC: Sei que você escreve literatura infantojuvenil. Como é sua relação com esse público? Costuma visitar as escolas?
AMM: Aos 15 anos, descobri que lidar com a infância era minha maior função nesta vida. Fui professora, apaixonada, desde então. Não foi difícil entender que unir essas duas paixões, livros e crianças, só poderia me trazer muita felicidade. A maior parte de minha produção literária é voltada para elas. E estar nas escolas, levando atividades que estimulam o prazer pelas histórias e pelos livros é uma oportunidade linda de não perder jamais a chama viva dentro do peito.
AC: Fale um pouco sobre Rendas urbanas, seu mais recente lançamento literário.
AMM: Rendas urbanas é um livro de minicontos que foi sendo construído, como projeto, lentamente, ao longo de alguns anos, quase que por si mesmo. Tudo gira em torno de histórias que acontecem nas cidades, entremeadas pela natureza que se oferece tão generosamente a elas, apesar de… Como dendrólatra de carteirinha, comecei a me encantar também pelas sombras que as árvores fazem pelas ruas, pelos prédios, nos carros, nas pessoas… Verdadeiras rendas que se espalham e se misturam às vidas que se relacionam em um ambiente tão corrido e tantas vezes tão cruel. Antes de tudo, os textos começaram a surgir. Paralelamente, comecei a fotografar as sombras que tanto me encantavam. E em um determinado momento, percebi que tudo estava relacionado, e o projeto pronto por si mesmo. Para minha imensa alegria, Eduardo Lacerda, da Patuá, gostou do livro, e a editora dedicou-se com muita atenção e carinho à publicação.
AC: Projetos em andamento: o que vem por aí nos próximos meses?
AMM: Projetos eu tenho sempre muitos, talvez mais até do que eu racionalmente quisesse ter. Três infantis, um romance, um segundo volume do Rendas urbanas. Mas são projetos para um ou dois anos. Para os próximos meses, serão lançados dois infantis. Um deles, Eu não sou a Rapunzel, é um livro pelo qual eu tenho um imenso carinho. Surgiu a partir de uma frase que ‘‘acordou’’ comigo há anos: Era uma vez um jacaré que se chamava José. O texto recebeu o primeiro lugar do Prêmio Amazônia de Literatura, em 2019, e sairá ainda este ano pela editora Duna Dueto, com projeto gráfico e ilustrações em aquarela do incrível Felipe Campos, que é escritor, ilustrador, especialista em Literatura Infantojuvenil pela UFRJ e mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada. O livro está ficando belíssimo! Além disso, ainda este ano também, sairá o Vira-lata vira-tudo, texto finalista do Prêmio Sesc Brasília, com uma proposta bem diferente, que fará muito sucesso entre os pequenos amantes de animais e que terá parte da renda direcionada à Sozed, ONG de proteção animal com a qual eu e minhas filhas colaboramos.
AC: Para encerrar, pediria que deixasse aqui uma amostra de seu trabalho como autora.
AMM: Bem, vou ilustrar um pouquinho do meu trabalho com três minicontos (todos do livro Rendas urbanas) e três poemas.
QUINTAL
Era um menino sem asas. Corria e brincava como qualquer outro. Da varanda da velha casa sobrevivente, entre tantos novos andares de cimento naquela rua agora, os avós o observavam no quintal, felizes com sua alegria.
O menino subia nas árvores e colhia seus frutos. Nadava em águas geladas de um rio e brincava com peixes. Lia histórias escondido do sol e contava as estrelas que iluminavam as noites sem luar.
— Como um menino sem asas conseguia ser assim, tão leve? — perguntavam-se sempre, desde que o neto de carne e osso os deixara, prematuramente.
LOJA DE QUINQUILHARIAS
Paralisou no momento em que bateu os olhos naquele objeto do qual nunca desconfiaria ter qualquer registro em sua memória. Era um bule, muito grande, alto, de alumínio, alça preta, sem nenhum requinte. Imediatamente o aroma do café e do leite tirado há pouco, na fazenda, invadiram o ambiente. O ar leve, puro e fresco da região. O sol que brincava entre as folhas da enorme mangueira, esmiuçando sombras dançarinas sobre as redes que embalavam tantos sonhos. O som acolhedor dos passos e da vassoura dura que, ao amanhecer, varria alguma terra perdida no chão da sala da casa grande, para onde se voltavam todos os quartos. Ao redor, montanhas e montanhas. A calma e a paz de uma vida de verdade. O aroma do leite e do café. Tudo ali. Naquele instante. Até que a vendedora, sem pedir licença, se intrometeu:
— Vai levar o bule, moça?
— Não, obrigada. — respondeu a mulher, em um susto de quase quarenta anos.
E saiu da bagunçada loja de quinquilharias, rapidamente, mergulhando de volta na multidão, em pleno Saara, centro da cidade, treze horas, no auge do verão.
CORREDOR DE ESPERA
— Maria Marta! — chamaram, de dentro da sala.
Com um esforço quase paridor, a senhora levantou-se, apoiada em uma bengala de três pés. Todos no corredor de espera, em mudo e constrangido respeito, encolheram os pés para facilitar-lhe a lenta e difícil locomoção. A gordura extra não era pouca, mas não lhe pesava tanto quanto a vida, isso era visível. Cerca de trinta minutos depois, deixou a sala do tatuador, com um sol na polpa do braço flácido e um discreto brilho no olhar. Era preciso iluminar o fim do caminho à sua frente. E partiu.
INVERNOS
Até quando
morrerei manhãs,
abraçarei sinais e consolos,
desviarei de vãos e vazios?
Até quando
sorrirei amarelos,
soprarei promessas e projetos,
choverei pássaros sobre poemas?
Até quando
sobrarão portas e planos,
faltarão sílabas e sussurros,
fechar-se-ão acordes e rimas?
Até quando
engolirei invernos e avessos,
ecoarei instantes e poentes,
vagarei intermédios e medos?
Até quando
anoitecerei o deserto de cada amanhecer?
BREVE
Que ao menos fosse breve, a vida.
O tempo de espera, o tempo restante.
E não seriam tão longos
os árduos momentos de sombras, os temores.
E não seria lançada sempre para tão longe
a possibilidade de ser feliz.
E não seria preciso armar e endurecer o coração
nesse incessante e insistente movimento de defesa.
Que fosse ao menos breve.
Um só instante de tudo ou nada.
Sem opções ou planejamentos,
sem póstumas comemorações ou lamentos.
Um só instante.
Mas que fosse inteiro, intenso e íntegro.
Que fosse a vida uma breve verdade afinal.
SÓ DE HOJE
Ando a passos mornos,
enquanto a vida ao meu redor
corre, corre.
Voam os carros, os rostos, os dias.
Voam os pássaros.
Mas os pássaros
voam sem pressa.
Voam voos leves,
de planta em flor,
de galho em folha,
como os meus passos,
pássaros sem pressa,
preces sem susto,
por esses cantos de hoje, só hoje.
O projeto AC Encontros Literários venceu o troféu APPERJ (Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro) 2021 na categoria Encontros Literários on-line.
Bem, é isso. Até a próxima!
Colunista do canal LITERATURA
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