Depois do teatro, um bate-papo num restaurante charmoso selou a noite, com uma amiga, em Ipanema.
Sentar-se numa mesa na calçada é arriscar abordagens diretas, pois o número de pedintes na cidade aumentou demais. Um homem parou na rua, separado de mim por um vaso de plantas, usado pelo restaurante como espécie de cerca viva, dando mais privacidade a seus clientes.
– Senhora, eu sou morador de rua. Também sou compositor e gostaria de mostrar uma das minhas músicas. Não precisa me dar nada. Se não gostar, tudo bem, mas eu posso mostrar minha música pra senhora?
Ele me assustou. Eu estava distraída com o celular. Um rapaz do restaurante se aproximou da mesa para mostrar que eu não estava só. Foi a reação instintiva (por vezes, injusta) de quem vive numa cidade violenta. Eu disse que o ouviria cantar até minha amiga retornar à mesa porque estávamos de saída, já tinha chamado um táxi.
Empurrava um carrinho de mercado com cobertor, algumas roupas e uns poucos objetos. Tirou dali um violão pequeno, arranhado. Logo que dedilhou o instrumento, percebi que ele não sabia tocá-lo. Os dedos percorriam as cordas sem marcação de notas, soltos, como crianças tocam guitarras de brinquedo. Seria uma cilada? Ele começou a cantar uma música sem métrica, sem rima, com uma letra claramente improvisada. Mas não era cilada; era um desabafo.
Ali estava sua história, o passado de desorientação pelo uso de drogas, a vida na rua, as noites longas na calçada e a certeza de que alguma força maior o protegia de todos os perigos. Cantou olhando para mim. Havia doçura e calma na postura. Sua fala parecia ser direcionada ao divino. Dizia: “eu sei que você não desistiu de mim e que, um dia, vamos nos encontrar”.
Apesar do questionável talento musical, mais duas pessoas pararam para ouví-lo cantar. Os olhos grandes, negros, mansos de tristeza. Parecia sincero. Nós da pequena plateia lhe sorrimos.
Parou de tocar. Perguntou a hora ao casal que lhe assistia porque tinha horário para chegar ao abrigo. Estava frio, ele não ficaria na rua. Separei os últimos trocados na carteira. Entreguei a ele, pedindo desculpas por ter pouca quantia. Ele me desarmou:
– Senhora, não precisa me dar nada. Você olhou para mim. Tem ideia de quantas pessoas têm medo de mim? Você me olhou. Eu queria muito cantar para alguém nesta noite e você me deixou cantar.
Fiquei comovida. Tive vergonha dos abismos entre nossas vidas, do meu gesto arrogantemente caridoso. Tantos questionamentos me fiz. Um talento é mais importante do que sentimentos reais? Voltei para casa pensando em quantas pessoas invisíveis desejariam, apenas, ser notadas. Mas um olhar pode validar uma existência?
Foi uma serenata do amor que deveríamos dispensar uns aos outros. Foi sobre dar voz e permitir que o outro nos impacte. Se a vida está longe de ser perfeita, nós podemos, ao menos, ser um pouco melhores.
Acho, na bolsa, o papel com uma mensagem com que o restaurante, por delicadeza, brinda seus clientes.
“O amor não é o que uma pessoa recebe. É o que põe. (Pilar del Rio)”.
Não é?
ANA LÚCIA GOSLING
Que lindo, amiga!! Sua sensibilidade é transbordante!!!
Estávamos lá, Glorinha! Obrigada pela leitura