Por que não sou divino para mim?, pergunto a Ricardo Reis.

Ainda na faculdade, redigi uma monografia sobre a concepção do divino a partir da poesia de Fernando Pessoa. O texto antigo foi resumido e adaptado, muitos anos depois, num artigo sobre o mesmo tema que publiquei num sítio de outra revista colaborativa.

Em ambos, defendi, em síntese, que, longe de duvidar da existência de um deus, Pessoa parece, na verdade, propor uma nova ideia acerca da relação do homem com o divino, menos dogmática, mais próxima, mais carinhosa e mais real.

O tema é longo. São muitas as ideias que abraçaram a discussão proposta e passaram, ainda, pelas diferentes vozes narrativas de seus heterônimos e do ortônimo.

Confesso, contudo, que este texto é um pretexto para “despejar” a obsessiva lembrança de um poema de Ricardo Reis, que me assalta há dias, desde que retornei à faculdade em que me formei para fazer um curso. Caminhando pelo campus, vieram-me muitas recordações referentes aos lugares e às pessoas que circularam por ali e, numa sucessão de associações, cheguei à memória de um colega que, num dia, sentado perto de mim, apontou o poema em sala de aula. Gostei tanto do poema que dali tirei o tema do trabalho final acima citado.

Diz o poema sem título de Ricardo Reis:

Meu gesto que destrói

A mole das formigas,

Tomá-lo-ão elas por de um ser divino;

Mas eu não sou divino para mim.

Assim talvez os deuses

Para si o não sejam.

E só de serem do que nós maiores

Tirem o serem deuses para nós.

Seja qual for o certo,

Mesmo para com esses

Que cremos serem deuses, não sejamos

Inteiros numa fé talvez sem causa.

Primeiro: deixemos de lado as considerações religiosas propriamente ditas. O que mais me atrai no poema não é o elemento religioso em si mas o uso literário da relativização do papel do Divino. Segundo: é preciso saber que Ricardo Reis é uma espécie de discípulo de Alberto Caeiro (outro heterônimo) e tenta aproximar-se ao máximo da ideia muito constante na poesia do outro de que a realidade encontra sua razão de existir nela mesma. Mas Caeiro é “genuinamente” pagão. Reis, não chega a sê-lo. Mas sempre põe sob nova perspectiva o papel dos deuses e possui uma voz mais angustiada.

O elemento perturbador do seu poema aparece claramente: “só de serem do que nós maiores/tirem o serem deuses para nós”. Os deuses que estão acima de nós, que sabem mais do que nós, talvez sejam falhos como somos, talvez tenham até elementos da nossa humanidade. Mas, no privilégio da posição que ocupam, um degrau acima do conhecimento raso que temos sobre a vida, soam para nós como deuses, como supremos, como agentes de um inexorável destino. Assim como nós, humanos, parecemos deuses aos olhos das formigas porque temos mais força do que elas e podemos interferir em seu destino, inclusive condenando-as à morte, num gesto intencional ou distraído.

Talvez os deuses não sejam deuses para si próprios, porque habitam o mesmo patamar de fraquezas e forças, diz mais à frente. Assim como nós enxergamos de perto o potencial e a fragilidade do outro. Por esse motivo, sugere o poeta que guardemos uma posição estratégica em relação àqueles que endeusamos: que a eles não entreguemos nossa fé, se ela for injustificada.

Numa interpretação pessoal, amplio o significado desse poema. Se os deuses parecem não ser, de fato, divinos, mas, apenas, superiores a nós em alguns aspectos, podemos lançar um desafio: e se, na verdade, eles o são mas também há em nós divindade? E se somos deuses “menores” mas deuses também? Se o que os faz parecer mais próximos de nós não é o que há neles de frágil mas o que há em nós de superior?

Há um outro verso de Ricardo Reis, num outro poema, em que está dito: “Nós, imitando os deuses,/Tão pouco livres como eles no Olimpo,/…/Ergamos nossa vida/E os deuses saberão agradecer-nos/O sermos tão como eles”. Vêm ao encontro da provocação acima.

Mas é apenas uma provocação. Na leitura dos poemas de Ricardo Reis, observa-se que os deuses são tratados como deuses, sejam os pagãos, seja o Cristo, ocupando um espaço superior aos seres humanos. Ao mesmo tempo, há um esforço para “deixá-los de lado”, porque ao narrador interessa mais intensamente tentar abraçar uma vida pagã e resumida nos próprios elementos que a vida possui em si. Contudo, nesse processo, insistentemente Ricardo Reis trata de temas como a morte, a brevidade da vida, o fado versus o livre arbítrio e, nisso, passa constantemente pela visão intrigante que possui sobre o divino versus o humano.

Certo é que o poema me tem voltado à mente de forma constante: Mas eu não sou divino para mim. Por que não? Por que negaríamos os elementos que nos aproximariam do que é espiritual e nos faz tocar as mãos de Deus/de deuses? No poema, o resumo tão fácil, tão objetivo e tão claro da ideia presente na poesia de Ricardo Reis em apenas três estrofes. A engenhosidade do poeta ao descrever uma linha de pensamento que, um dia, preencheu uma monografia inteira. Os deuses são aqueles que possuem vantagens em relação a nós. Mas a melhor resposta talvez esteja no verso de um outro poema de Reis: “Os deuses são deuses/Porque não se pensam”.

(P.S.: Havendo interesse na leitura, deixo o link para meu artigo sobre a ideia de Deus na poesia de Pessoa. Está em http://obviousmag.org/puro_achismo/2015/sobre-a-ideia-de-deus-na-poesia-de-fernando-pessoa.html).

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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