Segunda semana da quarentena. Alguma coisa se aquietou em mim. Talvez não devesse ser assim. Ainda vivemos no caos.
Estamos alguns dias atrás da Europa e assistimos à luta dos países surpreendidos pela pandemia. O mundo aprendeu que as relações sociais, pessoais, quiçá as políticas (tenho a esperança), mudaram. Aqui ainda nos debatemos com nosso medo, com nossa desinformação, com nossos credos. Sabemos que temos um inimigo invisível. Só há um jeito de combatê-lo: cuidando do próximo, ao cuidar de nós.
Cuidar do próximo é (ou deveria ser) fundamento de toda boa religião, especialmente as cristãs. Afinal, foi o Cristo que disse: “Amar ao próximo como a ti mesmo”. É coisa bonita. É muito difícil. Foi dito há mais de 2 mil anos e o homem ainda se agarra, muitas vezes, à defesa de seus interesses pessoais. Ainda não entendeu completamente os sacrifícios que amar exige.
Bem, eu dizia que estou mais serena. Informação é a chave. Ler e descartar as paixões. Encarar de frente, sem panos quentes, preparar-se, saber até que ponto vai a nossa potência e a nossa impotência.
Sentir-se impotente é a pior sensação. Mas é preciso ter em mente que ficar parado, quieto, abrigado, é uma ação necessária. Nós, que tivemos que construir nossa independência na vida, somos virados do avesso. Obedecer a regra salva vidas. Acatar os direcionamentos não perpetua a crise. Ser humilde e reconhecer nossa impotência é, paradoxalmente, uma forma de potência. É o que nos dá poder aqui do nosso cantinho. Não estamos diminuídos no nosso isolamento; na verdade, somos peça de um grande quebra-cabeça de proteção que nos alcança e aos que amamos, mesmo se distantes de nós. Sentir esse pertencimento subverte o sentimento de impotência.
Houve benção do Papa nesses dias. Uma imagem histórica. Papa Francisco, todo de branco, no meio da Praça de São Pedro, totalmente sozinho. A noite caía sobre ele enquanto falava, numa simbologia absurda. A chuva molhava o crucifixo enorme, milagroso para os católicos, símbolo de fé e resistência para todos. À direita, no corpo do Cristo, o sangue era pintura, simulando seu sofrimento. À esquerda, a água da chuva verdadeiramente escorria, discreta, brilhando o suficiente para ser notada na filmagem e nos fazer lembrar das lágrimas que se espalham mundo afora. Francisco caminhou com dificuldade, idoso, penalizado, humilde. Rezou diante das imagens sacras da sua religião, encolhido diante da grandiosa entrada da basílica. Pareceu ser, como nós, apenas um homem agarrado a sua fé. Mas, no centro daquela praça, ele entoou palavras de poder que ecoaram no mundo: o poder do amor, da solidariedade, que vem da nossa própria humanidade. Ele se dirigiu a Deus, citou as Escrituras, mas evocou nossa humanidade para a superação dessa crise. Um único homem, armado de palavras. Disse: “…esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas ruins (…) o Senhor nos interpela e, no meio da nossa tempestade, nos convida a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar…”
Emocionei-me com o Papa e com nossa fragilidade humana. Somos menos sozinhos do que supunhámos. Dependemos uns dos outros. O mundo se une numa espécie de dinâmica familiar. Necessitamos dos outros para guardar as pessoas que amamos. Sinto-me, de novo, um pouco criança diante do incalculável. Preciso que me apontem alguns rumos, não posso caminhar sozinha. Ninguém pode. Nosso amor é capaz de pouco. Nosso amor não pode proteger todos que amamos, nem blindar-nos contra uma ameaça invisível. Sinto-me pequena, também, diante do portal do mundo.
Estranhamente, aí está a beleza deste momento. A descoberta na carne do ensinamento ético que percorre a noção mais básica de humanidade: todos importam. Somos partes de um todo e cada um tem seu valor e sua importância na cadeia das relações. Sendo assim, todos merecem acolhida.
Acolhida…Vem a saudade dos colos paternos. Vem a saudade da casa da infância. De andar de bicicleta no quintal. De dançar no quarto no segundo andar da casa e fazer tremer as lâmpadas do lustre da sala. Da goiabada com requeijão que minha madrinha mandava para mim. Das tardes de TV depois dos deveres da escola. Do misto quente com laranjada na hora do lanche, assistindo ao Batman (a série), ao Sítio do Picapau Amarelo ou a Daniel Azulay.
Coincidência triste: Daniel Azulay partiu nesse mesmo dia, após contrair o vírus que nos assombra. A criança em mim chora. Sinto gratidão pela companhia que ele me fez sem saber. Sinto saudades das suas musiquinhas, dos personagens da Turma do Lambe-Lambe. Dos seus suspensórios, do seu sorriso, dos seus desenhos que eu tentava copiar. Não conseguia, à exceção de um Papai Noel feito com dois corações, a quem eu dava um toque especial, roseando suas bochechas. Lembro de mim, ligando escondida para o número em que se ouviam charadas e piadinhas da turma. Professor Pirajá, a coruja, tinha uma música divertida, em ritmo de forró, festa junina. Sempre gostei de dançar quadrilha e o meu primeiro vestido de caipira era de xadrez amarelo e tinha uma anágua para a saia ficar um pouco armada. Achava bonito ver as saias armadas nas novelas de época. Na infância, as escolhas eram feitas em cima das ilusões (na infância?). Amarro lembranças diferentes, uma na outra, na noite ociosa da quarentena.
Quase não uso amarelo. Quase não penso na criança que fui. Mas é ela que me dá a mão para mostrar-me a beleza desses dias tristes. Ela me relembra da simplicidade da vida, do acolhimento que se encontra nos braços dos amores que realmente importam. Ela me traz saudade das tardes à toa, do ritmo desacelerado e me faz valorizar o momento de agora. No meu pequeno espaço, enquanto trabalho em casa, tenho ao redor tudo o que deveria me bastar. No ritmo frenético da vida antes da epidemia, nem sempre me lembrei de agradecer a isso, mesmo sabendo que há outros, diferente de mim, que estão em desvantagem.
Sinto vontade de cantar “Algodão doce”(*), música do Daniel Azulay, buscando lá no fundo uma alegria. Ironicamente, a música da infância dialoga comigo, de repente, nesses dias sérios e graves: “agora é hora de voltar ao princípio, ao começo da história”. A Natureza sinaliza os abusos do homem: animais reaparecem em regiões de que tinham sumido; há céus limpos, sem a fumaça das fábricas; há canais e rios límpidos, em resposta à paralisação das cidades. O Mundo nos relembra o quanto somos interdependentes: o contágio atravessa fronteiras e a ajuda humanitária também; há colaboração entre países para diminuir os efeitos maléficos do que vivemos. Falemos para a criança em nós: é hora do cantinho do pensamento. Digamos aos religiosos, cristãos ou não (até ateus que tenham a ética por religião): é hora de sermos solidários, deixando de lado diferenças que nos distanciam. Se o homem não aprender essa lição agora, vivenciando esses dias únicos, ah, não aprende mais.
Escolho pensar que sairemos melhor disso tudo, apesar das cicatrizes desse processo. Quero crer que esse exercício de equilíbrio mental e psicológico que nos foi imposto, bem como as transformações vindas depois de tudo, serão combustível para uma nova perspectiva da realidade humana – uma mais generosa e menos arrogante. Que nossos esforços sejam como o pedalar na bicicleta de Daniel, desfazendo no ar a tristeza e consolidando a lembrança do amor desse momento, como o “algodão doce que o vento levou”.
Fiquem firmes! E em casa!
(*) Para quem não lembra a letra da canção, aí vai: “Sentado no caixote/Abraçado na viola/A roda pede pra cantar/Eu canto e digo agora é hora/De voltar ao princípio/Ao começo da história/De que tempos me recordo/Só eu sei por onde andei/É pena que hoje acordo/Pra contar o que sonhei/Corre, corre, corre/Curriola, curriola/Corre, corre/Vem /chegando o algodão doce/Algodão doce/Corre, corre, corre/Curriola, curriola/Corre, corre/Vem chegando o algodão doce/Bate o sino/O que é que trouxe?/Algodão doce, algodão doce/Bate o sino/O que é que trouxe?/Algodão doce, algodão doce/Roda, roda, roda, bicicleta/Bicicleta roda, roda/Desfazendo/O algodão doce/Que o tempo levou”
ANA GOSLING