Às quartas – Capítulo Um: Crase

Com Ana Lúcia Gosling

Imagem criada por IA – ChatGPT

 

Nem prosa nem poesia, queria romance. Um prólogo instigante, parágrafos encadeados por suspense e paixão. O epílogo sugerindo ao leitor a continuação da história em novo volume.

Ela sonhava serem conjunção. Ele separava todas as sílabas. No jantar, ela lançou mão de períodos compostos, orações subordinadas, testando futuros indicativos. Ele, esquivando-se, adotou coordenadas adversativas e voz passiva, balbuciando frases que não chegavam a oração. Com poucas palavras, a noite mal preencheu um capítulo. A narrativa não serviria a novela ou conto, que dirá a romance. Uma crônica, talvez, com um recorte da cena.

Desceu do carro sem conferir se ele a esperara chegar à portaria ou se logo dobrara a esquina. Sem saber ser ponto final ou vírgula no fim do período. Ressentiu-se. Tentando elipsar a solidão, formara um dicionário de verbetes ultrapassados. Tentara os termos gramaticais consagrados pelo uso, apelara até para as gírias contemporâneas, disfarçando o silêncio no espaço que expressões idiomáticas deveriam ocupar. Nada funcionou. Mesmo os dois parecendo concordantes, complementares, feitos um para o outro.

Mas eram graves os problemas de regência. Ela desejando assistir em Ipanema, perto da praia; ele, marcando de assistir ao futebol aos domingos. Ela aspirando a beijos à beira-mar; ele reclamando de aspirar o aroma da maresia. Havia, também, a distância entre suas figuras de linguagem. Ela, hipérbole e sinestesia; ele, litote. Sem ver paradoxo, ela insistia na ironia. Até entender ser necessário corrigir a rota. Nada de metáforas. Símiles, no máximo. Chegara a hora dos pingos nos is.

Procurou-o com um discurso direto, sem anacolutos nem adjetivos supérfluos. Fez de tudo para ser entendida. Não faltou argumento a quem conhecia, de perto, as catacreses da vida. Substantivou verbos, adjetivou substantivos, substituiu gerúndios por imperativos. Explicou, com apostos e comparações, a frustração com a relação. Colocou-o contra a parede.

Ele se desculpou pelas reticências. Confessou um impasse íntimo. Mesmo praticando exercícios de conjugação, ainda não havia definido seu artigo nem seu pronome. Preferia as variações e sabia ela ser adepta da norma. Para sua surpresa, ela não se importou. Cedendo ao desejo, conjugou “experimentar” na forma pronominal e na transitiva direta. Crasearam-se, entregues à sintaxe. Despreocupados com o desenrolar da trama. Sem importar desinência de tempo, modo, número, gênero ou pessoa.

 

 

ANA LUCIA GOSLING

@analugosling

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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