Com Ana Lúcia Gosling
Encantamento
Júlia sabe tudo sobre encantamentos. Leu nos livros que sapos viraram príncipes, borralheiras se tornaram princesas e varinhas de condão transformaram objetos bobos em coisas raras.
Júlia pouco sabe da ação do tempo, pondo a perder os encantos, enterrando as ilusões. Aprenderá, na primeira decepção amorosa, que príncipe pode virar sapo. Melhor apaixonar-se por um homem real, com quem divida as dificuldades da vida. Que o traje de princesa não é tão útil quanto a roupa de guerreira. Não há mulher que não trave batalhas.
Mas não quero que Júlia pense que a poeira brilhante e os rastros de fada são sepultados sob a estrada por onde passamos. A caminhada não é só razão, dever, obrigação. Por isso, conto-lhe esta história verdadeira.
Semana difícil. Apreensiva, à espera de um diagnóstico, a moça não dormiu várias noites. Cansada da lida diária, que não dá ao emocional a pausa para elaboração das paixões nem das alegrias, chegou em casa, numa sexta-feira, torcendo para encerrar a semana com banho e cama. Mas foi abrir a porta e dar de cara com a sala cheia de pessoas, amigos dos filhos, rindo-se como só se ri na juventude. Adultos, alegres, estavam em volta de uma mesa de botão, esquecida há anos num canto do apartamento. Brincavam de serem moleques, em pé, na sala, dando à noite ares de festa. Uma música animada tocava. Havia sobra de pizza no aparador. Os jogadores de botão, guardados no armário, ocupavam o centro da mesa, conservados, coloridos. Havia grito de gol e de torcida e gargalhada cortando o silêncio da madrugada. Para ela, abraços na chegada e a certeza de ter encontrado abrigo. Ela não pensou no cansaço, vê, Júlia? Só na magia: homens tornados meninos; disco de acrílico se passando por gente; a noite escura riscada de sorrisos. A cama aconchegou tanto que evaporou a semana de angústia.
Não procurava poeira de fada mas, certamente, a encontraria na amiga, no dia seguinte. Na aula de dança, pela manhã, participaram de um lanche de confraternização. A outra chegou arrumada por ser dia de festa. Nada de legging, moleton nem tênis. O corpo coberto de estampas, uma flor nos cabelos arrumados, o rosto maquiado, os pés descalços, apoiados na ponta. Um colar branco pousado no colo. Enquanto dançava, imitando os exercícios, o vestido solto no ar, os olhos brilhando como pó de pirlimpimpim. Ela a observava, sentindo-se testemunha de um milagre silencioso: vencer os dias, apoiar-se na ponta, sem peso nos ombros… “flamular”. Júlia, se você também a visse, descobriria que coração de criança nunca fica adulto.
Na última hora da semana, veio o deslumbre. Disseram-lhe que planetas se alinhariam, não os viu. Que a chuva ia cessar, não cessou. Que o amor voltaria no verão mas já era inverno. Por isso, nada esperava quando se sentou sozinha na varanda. Ao longe, um vizinho tocava violão. Uma voz forte e as sílabas delicadas, os versos da canção a transportando para aquele momento da vida, antes do sereno. Os olhos encheram de água, borboletas despertaram no estômago, as memórias chegaram mornas e doces, como brigadeiro de colher, vestindo a alma de saudade. Ah, Júlia, é verdade quando digo: a vida não é brinquedo. Mas, procurando sob as pilhas, na mente da gente, sempre há uma lembrança boa perdida, esperando descer de escorrega até o coração.
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com César Manzolillo