Não havia muito a arrumar na casa esvaziada. Empilhou as revistas num canto. Afofou as almofadas para tirar as marcas de cabeça e bumbum. Abriu a cortina para a luminosidade alegrar o ambiente. A caneca no chão, retirada, deixou um círculo molhado no centro do taco. Que secaria, minutos depois, agora que o sol invadia até o centro da sala.
Os sons da vizinhança eram distantes. Vozes esganiçadas de crianças brincando no play. As maritacas, em bando, passando próximas da janela do quarto, nas primeiras horas da manhã. Os ambientes ecoariam os risos e as falas, quando chegassem.
Chegaram. Os olhos percorreram as falhas na madeira na varanda, as rachaduras no teto da sala, o forro estufado de umidade na parede separando o banheiro do quarto. Não se repousaram no sorriso aberto do anfitrião, nem na aquarela de tons de verde, vista de cima, apoiando-se os braços no vidro da varanda. Contas, custo e benefício, linha de crédito. A mente no exercício da possibilidade de aquisição, distraída da paisagem que valeria qualquer sacrifício.
Sentaram-se num banco; sentou-se a mulher, na verdade – não havia dois assentos. O marido negociava parcelas e data da entrada. A esposa, aborrecida com os números, perdeu-se na observação das maritacas, agora voltando, pois a tarde terminava. Suas silhuetas coloridas contra um céu muito azul pareciam pintura de algum artista.
“Viu os pássaros?”. O marido a ignorou, divindo as doze parcelas em apenas dez. “Que silencioso aqui! Ouvem-se pensamentos”. O homem só precisava do aval do gerente, confirmaria no dia seguinte a aprovação do negócio. “É aqui. Não quero mais sair daqui”. Riram, na despedida, todos. O aperto final adiado para amanhã, a despedida adiantada para esta noite.
Ele deitou o corpo, estrelado sobre os tacos perfeitos. Fechou os olhos e viu passarem as crianças apressadas para a escola, os pais sentados no sofá em frente a tevê, assistindo à novela. Sentiu o cheiro do refogado e o chiado da panela de pressão, vindos da cozinha. As luzes piscando, atravessando o globo colorido, comprado para as festinhas em casa. Os amigos adolescentes espalhados pela casa, em busca de diversão e romance. Muita vida morara naqueles cômodos, esvaziados de pessoas e coisas, abarrotados de história.
No outro lado da cidade, à hora de dormir, a compradora fixaria seus olhos no teto, imaginando a nova vida que caberia a ela e ao marido usufruir. Todos, no fechamento ou no início de suas histórias, com saudade do passado ou com expectativa para o futuro, dormiram, leves, cada um na sua estrada.
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo
Lindo! A saudade ficará nossas retinas!