CHEGOU A HORA DE MOSTRARMOS QUE A POESIA PRETA SEMPRE TEVE VALOR. ÉLE SEMOG LANÇA OBRA COMPLETA, DE 1977 A 2020
Luis Turiba*
A chamada Poesia Preta, que nasceu no Brasil em meados dos anos 70, do século passado, como um instrumento da inteligência humana no combate à ditadura militar desumana; mas ao mesmo tempo, posicionando-se com firmeza contra o racismo estrutural e cotidiano que paira até hoje na sociedade brasileira, especialmente nas comunidades mais carentes e originárias de descendentes afros-brasileiros (favelas, quilombos e aldeias ribeirinhas); alcança agora, neste mês de outubro, um patamar estético de dimensões transcendentais.
O poeta carioca Éle Semog (@elesemogsemog) lança no próximo dia 11 de outubro, às 18h, no prédio sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Centro do Rio, bem atrás da Biblioteca Nacional, um livraço de 290 páginas intitulado “Todo Preto”, com a sua Poesia de combate, ao longo dos últimos 50 anos.
“Todo Preto” saiu pela editora “Ogum’s Toques Negros”, que trabalha com livros altamente qualificados, a partir da cidade de Salvador, na Bahia. O primeiro lançamento já aconteceu na cidade de Belém do Pará, em meados de setembro, como parte dos preparativos para a Conferência Mundial do Clima que acontecerá no segundo semestre de 2025 na linda cidade onde funciona o famoso Mercado Ver o Peso, com seus aromas de raízes, frutas, peixes e gentes.
O livro de Semog lança no mercado, além de um conjunto estupendo de poemas, uma das mais lindas capas, repleta de significados, publicadas ultimamente no mercado livreiro. Aliás, vale comentar que “Capa” ainda há de merecer prêmios importantes como invólucros sagrados de obras poéticas e literárias. No caso deste livro, a combinação foi supimpa. Nota 10!!!
Vale, assim, ressaltar que Semog nasceu na Baixada Fluminense, em Nova Iguaçu, mas toda a sua juventude de militância poética e política ocorreu no entorno da Lapa, bairro boêmio carioca, onde Noel Rosa, que não era negro, conheceu e tocou sambas com Cartola e outros bambas, como o capoeirista Madame Satã. O histórico Arco da Lapa, com o Bondinho de Santa Teresa fazendo sua travessia diária, serviu de cenário para os diretores de Arte (Dadá Jaques e Guellwaar Adún), aproveitarem uma foto do autor feita pela sua musa-amada, a historiadora Marize Conceição, e chaparem seu perfil com o clássico cavanhaque de Trotsky que marca o rosto do poeta.
Pois bem, Semog dedica o livro à sua Marize e afirma: “tem dias que você parece mais bonita que a vida”. Logo em seguida, ele faz uma afirmação que tem tudo a ver com sua obra e seus poemas, mas que, de certa forma, cria uma certa “tensão” em seus leitores:
“Quando comecei a militar na poesia e no movimento negro, mais especificamente na poesia, é claro que eu não nasci um poeta negro. Vim cheio de influências de Carlos Drummond de Andrade, de João Cabral de Melo Neto, de Carlos Nejar, Ferreira Gullar e de outros que compõe essa elite branca da literatura brasileira. Eu bebi nessa fonte, mas não cheguei a me envenenar.”
Aqui, eu prefiro dar um desconto. A radicalidade faz parte dos poetas. E tudo que leu antes de se tornar um “Poeta Negro”, foram biscoitos finos que Éle degusta até hoje.
Ao escrever, lá no começo, em plenos anos da barra-pesada, um poema como “Incidente normal”, o rebelde começa a traçar suas cores com um estranho lirismo.
Diz o poema:
“Brotou sangue/ do nariz do rapaz/ quando o guarda da Central/ bateu-lhe com o cassetete/ no rosto. /A marmita esparramada no chão/ e a dor. No meio de tanta gente passiva/ só eu gritei/ FILHOS DA PUTA! /quase me pegaram/ mas fugi. / Ainda me lembro, / brotou sangue…/ e nunca vi tanto vermelho/ sair de dentro de alguém.”
Entremeando seus poemas, os editores publicam pequenas notas que esclarecem a busca do equilíbrio e os caminhos editoriais que Semog trilhou entre a Poesia-poesia e a Poesia Preta e o Poema Crioulo, como gostava de dizer o poeta Arnaldo Xavier.
Neste contexto, tem uma imensurável importância a publicação do livro “Atabaques” em 1983, numa parceria com o poeta José Carlos Limeira. O prefácio deste livro é do histórico poeta gaúcho Oliveira Silveira, o autor do Dia da Consciência Negra no 20 de novembro, aniversário de nascimento de Zumbi dos Palmares. Diz o editorial do “Atabaques”:
(…) Por isso os dois poetas, embora certos da especificidade da questão negra, não se limitam aos termos particularmente negros, mas se preocupam com problemas sociais (…) Obra ditada pela sensibilidade e pela consciência social de homens politicamente definidos, que partem para uma de dizer no verso tudo o que aí está posto: a Marginália, a repressão, a greve, a novela das oito, o discurso ditatorial na televisão. (…) Outra: a linguagem. Não aquela que interessa à dominação elitizada, posuda, hermética, intelectualizada – “Use os pronomes com delicadeza”. (Semog) – mas a linguagem clara, simples e direta, inclusive com as expressivas expressões da gíria: você que ainda tá numa, quando esta zorra mudar, fritar o cabelo, dirigir fogão, saco cheio. Ou a sugestiva classificação: classe mérdia.
Oliveira Silveira in: Tabaques, prefácio p.2, Rio de Janeiro, (Ed. Dos Autores, 1983).
Outra iniciativa histórica na formação da Poesia Preta Brasileira, é o livro “A Ebulição da Escrivatura”, publicado pela editora Civilização Brasileira, em 1978, que segundo o poeta Salgado Maranhão, parceiro de Semog:
“não é manifesto ou síntese de um movimento”, mas uma deliberada “união de poetas novos e inéditos no propósito de fazer seu recado chegar às mãos do público”.
Prossegue o poeta:
“A gente sabe que de 68 para cá, não houve qualquer movimento de cultura que tivesse repercussão nacional. Em parte pela repressão política, mas num outro plano, pela timidez que acompanha a poesia brasileira desde os tempos do Concretismo. (…)
Deste período, explica o criador da “Ebulição”, está nascendo uma poesia reflexiva e bastante consciente quanto ao uso da palavra. É uma explosão de vários anos de sufoco e emoções acumuladas, sacudindo a própria repressão e os cipós do formalismo, para se tornar viva e intensa como a dor de um quisto.”
Os movimentos cresciam, se multiplicavam e a produção poética ficava cada mais vez mais provocativa.
Quando dona Justa chegar
Não se esqueça/ temos um buquê de cactos/ para entregar no seu funeral”
Outro poema relâmpago da sofreguidãoEu, o lixo eu
Perdi tudo! /por incrível que pareça/ perdi até os meus/ piores momentos/ Diabos!!! / como eu vou fazer/ para repor meu sofrimento/ se agora não tenho você/ para me escorar nas coisas boas/ do coração/ Você foi-se embora com tudo/ e nem lixo eu posso ser
Também crescia a autocompreensão naqueles tempos de busca de identidade e ao mesmo tempo a liberdade de ser o que era.
Retrato
Perdi o movimento/ do ciclo/ virei domesticado/ bicho de circo/ desprovido de sentido/ e dialética/ Aceitei tanto as grades/ que me transformei em jaula/ e me perdi dentro de mim.
Éle Semog diz numa das orelhas do livro, que não sabe localizar com exatidão o momento em que “bateu” a consciência da poesia em sua existência:
“lembro que no quinto ano do curso primário, ganhei o primeiro lugar da escola num concurso de redação, promovido pelo jornal O Globo. Para ele, a literatura como manifestação artística, começou quando tinha uns quinze, dezesseis anos. Seu texto crítico, irônico e de cunho político e social, não perdeu as perspectivas das emoções e da condição de vulnerabilidade das pessoas, frente às certezas e incertezas. Como escritor, participou de muitos embates à ditadura militar. Fundou os grupos Garra Suburbana, Bate-Boca de Poesia e Negrícia – Poesia e Arte de Crioulo. Foi editor de encontros de poetas e outras jornadas como as Bienais Nestlé de Literatura e Poesia; além do Encontro Nacional de Poetas e Ficcionistas Negros Brasileiros. Esteve em Angola, no Simpósio de Poesia, e em Portugal, na cidade do Porto, nas Celebrações e Reflexões dos 500 anos da Descoberta do Brasil. Fez conferências em 22 cidades da Alemanha, em 1992; e participou do Congresso Internacional de Literatura Comparada, na cidade de São Salvador, em 1998.
Assim, ele se formou um ser cuja rebeldia não perdeu o seu lirismo. Segundo Silvio Roberto Oliveira, que assina a apresentação do seu livro, “Todo Preto” não é apenas uma reunião de poemas, “mas um encontro que desinquieta a marcação criativa de tempos históricos e literários, que renascem a cada imagem”.
E prossegue:
“Assinala uma obra fundamental para a compreensão de vieses do movimento literário do negro brasileiro, do fim do século XX a esta década do século XXI, e que apresentam aspectos estéticos e criativos enriquecidos pelos pasmos das paixões e da mordacidade irônica e crítica necessária”.
E conclui:
“a produção estética de Semog está integrada ao pensamento literário da diáspora negra, reverberando diálogos com tipos cotidianos e tempos que refletem a memória ancestral e familiar individual e coletiva, do sujeito que transita sobre os Arcos da Lapa e, ao mesmo tempo, enquanto caminha transforma vivências em poesia”.
Nada traduz melhor seu trânsito intenso, por nosso tempo, do que três poemas curtos, quase na últimas páginas deste livro de céu negro estrelar.
Cada um no seu qualquer
É por isso que eu gosto
do Rio Negro,
não se mistura
mesmo quando chega ao mar
e volta na forma de chuva.O graveto e a tora
Não olhe para mim
pensando que sou
um negro e só.
Olhe outra vez,
e veja.
Sou negros.Memórias
Já fui tão romântico
que pensava que toda
dama de puteiro
tinha um ursinho de pelúcia
Sim, temos Éle Semog
(Revisão: Rose Araujo – @rose_araujo_poeta)
(Nota do Editor: veja também a matéria do Jornal O GLOBO sobre o poeta Éle Semog)
LUIS TURIBA
*Luís Turiba é jornalista aposentado, poeta com 3 livros editados pela 7 Letras do RJ, e outros 8 livros no campo da poesia independente e/ou marginal.É editor da revista anual de invenções poéticas Bric a Brac, criada em Brasília, em 1985. A Bric a Brac 8, última edição, saiu em 2022, uma celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e ainda pode ser encontrada nas melhores livrarias de Ramos.
Éle Semog sempre foi uma das vozes mais poderosas a favor da literatura negra, se assim se possa dizer, com sua dicção pungente, lírica e generosa a favor das minorias. Essa compilação de sua poesia é, desde já, um dos grandes lançamentos do ano! “Enhorabuena! Obrigado, Turiba, por essa informação tão importante para os que amam a boa poesia brasileira. Bravo!
Maravilhosa homenagem e divulgação necessária do livro de Éle Semog. Parabéns pelo texto e pela coluna, Turiba. Muito obrigado por ajudar a trazer pautas como essa para o ArteCult. Viva a poesia preta.