“o amor que morre é uma ilusão
e uma ilusão deve morrer”
(Coração Vulgar, Paulinho da Viola)
Os caroços de feijão separados das pedrinhas que se misturaram na embalagem, jogados na panela de pressão. O arroz lavado no escorredor, escorrendo na pia da cozinha. Os filés de peixe deitados sobre uma caminha de rodelas de batata, encharcada de limão, azeite, coentro e tomate. A cozinha misturando o cheiro dos refogados, buscando no corredor narizes capazes de imaginar, atrás da porta, um lar.
O vestido novo, comprado na promoção após o dia das mães, definindo seus contornos de mulher. O vermelho do tecido e da boca realçando a pele. Os cabelos cacheados, com as pontas levemente douradas, para causar estranheza e aguçar o desejo de quem esteve longe.
As fotos das meninas nos meses em que não se viram. A apresentação de capoeira, o recital desafinado de flauta, os corações tortos a ele dedicados num cartão rosa e lilás. O combinado de voltarem à noite, com amigos, enganadas com sorvetes e piscina de bolas, enquanto os pais se reencontravam, antes.
As janelas abertas mesmo sendo dia, com as cortinas formando um véu espesso entre o encontro deles e a curiosidade alheia. O vento assanhando o voil mas as frestas não ferindo a discrição. O ar disfarçado em brisa ciclonando seus corpos.
Assim seria. Já estava sendo para ela. Desde o dia anterior, em que preparou o corpo, deixando mais macias as pernas, retocados os cabelos e feitas as unhas.
A demora não a desanimou, conhecendo o trânsito da cidade. Deu-lhe um tempo extra para enfeitar a sobremesa. Tão pouco dedicada aos afazeres domésticos, absorvida pelos compromissos de trabalho, orgulhou-se, admirando a mesa posta, o capricho da sala, o ar de festa íntima. Não se conteve e tornou pública a espera: uma foto no Instagram, com música romântica ao fundo e um filtro com flocos de luz.
Chegou atrasado. Pelas mãos, as meninas, estendendo à mãe as bonecas que ganharam de presente. Sua alegria atropelando os preparativos, enrugando a toalha da mesa, poluindo o cenário da sala com as mochilas coloridas e os tênis sujos da educação física.
Abraçaram-se, enquanto ele gritava à filha menor que não se demorasse no banho. Tinha fome. Abriu as tampas das panelas, satisfeito por chegar. Elogiou a beleza da mulher, num beijo breve. Comeram em família, atualizaram histórias à mesa. Ele reclamou das dificuldades da viagem. Recolheu-se antes que ela tivesse se desembaraçado das filhas. Deitaram-se lado a lado. Ele se virou para o lado. Tinha sono. E ela, ainda, a boca vermelha de batom.
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com César Manzolillo
Que texto perfeito! Triste, real, lírico e melancólico, além de certa tensão nas palavras até o clímax final. Uma aula de observação crítica da alma humana. Parabéns!
Ah Tanussi, muito obrigada por esse comentário generoso. Grande abraço.