Olá, amigos!
No artigo de hoje, vou iniciar uma nova série, falando sobre culinária regional e suas especificidades. Em cada parada nesse Brasilzão nosso de cada dia, vou mergulhar nos pratos típicos e na cultura de uma determinada região. Pra começar com a corda toda, aproveitando a viagem recente que fiz, vamos ancorar nosso barco virtual no porto de Salvador e, dali, partir pra uma viagem por sabores que estão intimamente ligados aos cultos de origem africana. Não à toa, dia desses, próximo ao meu trabalho, teve uma feira de gastronomia de refugiados e, qual não foi a minha surpresa, ao experimentar um prato do quiosque na Nigéria, ter reconhecido nele todos os ingredientes com os quais convivi – intensamente! – durantes todos os incríveis dias em que passei em terras baianas…
Mas vamos lá, desde o comecinho…
Fui recepcionado no aeroporto da capital por um parceiro do reality “Jogo de Panelas”, da edição de Salvador, Ranieri Mutti (@ranimutti), um grande amigo que, além de um magnífico guia turístico, também é um maravilhoso cozinheiro, profundo conhecedor da cultura e da gastronomia da região, principalmente da culinária baiana e, fiquei sabendo, um boleiro de mão cheia!!!
Depois de “turistarmos” um pouco pela capital, a fome se fez presente, e ele me levou ao famoso Restaurante Escola do SENAC, no Pelourinho. Instalado em um simpático sobrado, esse complexo do Senac, formado por três casarões coloniais que remontam ao século XVIII, localizados no Largo do Pelourinho, oferece serviço de buffet com 40 pratos típicos da gastronomia baiana e 12 tipos de sobremesa. Vale destacar que, por ser um restaurante escola, tanto os profissionais da cozinha quanto do salão estão sendo treinados e avaliados, o que garante, por certo, o atendimento e o sabor dos pratos.
Dentre todas as opções do cardápio, temos pratos típicos da cozinha do recôncavo baiano, com sua vertente afro religiosa e o protagonismo do dendê – pratos esses que estão reservados, pela tradição e hábitos locais, às sextas-feiras e às comemorações de datas institucionais, religiosas ou familiares – bem como pratos da cozinha sertaneja da Bahia, herdados da vertente portuguesa e que correspondem à alimentação do dia a dia do baiano, com uso da carne seca e produtos do sertão e do cerrado.
Tinha tanta coisa! Vatapá (seu preparo pode incluir pão molhado ou farinha de rosca, fubá, gengibre, amendoim, castanha de caju, pimenta-malagueta, leite de coco e azeite de dendê, entre outros ingredientes como camarão, outros peixes ou frango), abará (feito com a mesma massa do acarajé, é um bolinho de feijão-fradinho moído e cozido em banho-maria e embrulhado em folha de bananeira), moquecas variadas (é um cozido de peixe e outros frutos do mar com diferentes temperos, sendo o azeite de dendê, o leite de coco e o coentro os ingredientes mais tradicionais), bobó (é feito de macaxeira ou inhame, amassada e cozida com azeite de dendê, leite de coco e temperos), xinxin (uma espécie de refogado, que leva ingredientes como frango, castanha de caju, amendoim, azeite de dendê, gengibre, camarão, leite de coco etc), maxixada (ensopado de maxixe), quibebe (é um purê de abóbora, sendo um prato de origem africana), arroz de hauçá (prato preferido de Jorge Amado, leva charque, camarão seco, dendê e pimenta), feijão de leite (feijão cozido com leite de coco e açúcar), sarapatel (costuma ser feito com tripas e outras víscera do porco, ou mesmo cabrito, sendo um prato de origem portuguesa), efó (refogado com os temperos tradicionais, como dendê, pimenta etc, de uma planta chamada língua-de-vaca, trazida de Portugal), caruru (um cozido de quiabo, geralmente servido acompanhado do acarajé ou abará, de pedaços de carne, frango ou peixe, de camarões secos, azeite de dendê e pimenta), acarajé (delicioso bolinho feito de massa de feijão-fradinho, cebola e sal, e frito em azeite de dendê), quiabada (é um prato típico da cozinha do nordeste, especialmente a Bahia, feito de quiabo, carne bovina, camarão seco e coentro), cocadas (é um doce à base de coco, tradicional em várias regiões do mundo, especialmente na América Latina e Angola), quindim (é um doce que tem como ingredientes gema de ovo, açúcar e coco ralado), manjar (geralmente feito com leite ou creme de leite e açúcar, engrossados com gelatina ou amido de milho, aromatizado com amêndoas, sendo que a versão mais popular utiliza leite de coco e ameixa)… Ufa! Posso garantir, foi quase um milagre colocar tantos pratos típicos juntos num só prato – na verdade, montei (e devorei!) três versões pra conseguir experimentar um pouquinho de cada especialidade. Dá uma olhadinha numa delas:
Ah, e ainda tinha que encontrar espaço pros doces – que são tão interessantes e variados! Não foram montagens perfeitas, obviamente – em breve, teremos um artigo sobre food design – mas foi o que deu pra fazer, já que a fome exigia urgência…
Aqui vão algumas curiosidades sobre o azeite de dendê, óleo extraído do dendezeiro, palmeira originária da costa ocidental da África (Golfo da Guiné), utilizado em pratos como caruru, vatapá, acarajé, bobó-de-camarão, abará, entre outros e que é consumido há mais de cinco mil anos. Foi introduzido no continente americano a partir do século XV, coincidindo com o início do tráfico de escravos entre a África e o Brasil e acreditem: ele é o segundo óleo mais produzido e consumido no mundo, representando 18,49% da produção e 20,40% do consumo mundial.
Pra quem nunca tinha visto, dei sorte, pois, além de dar de cara com o fruto, passei por diversos dendezeiros – afinal, eu estava na famosa Costa do Dendê, uma das zonas turísticas da Bahia estabelecidas devido ao Programa de Desenvolvimento do Turismo e que compreende os municípios de Valença, Igrapiúna, Cairu, Camamu, Taperoá, Nilo Peçanha, Ituberá e Maraú, localizados no baixo sul do estado.
Depois desse memorável almoço, um novo passeio pela capital, até que ele me apresentou à tradicional Sorveteria da Ribeira, com seus 60 sabores de frutas tropicais, exóticas e sabores ao leite. Segundo o site da sorveteria, “era 1931, quando um comerciante italiano abriu uma pizzaria no bairro da Ribeira em Salvador e seguindo o costume dos restaurantes sua terra natal, presenteava os clientes com sorvetes fabricados na própria casa, exatamente como na cultura de seu país. A diferença é que Mario Tosto contando com os ingredientes que eram vendidos nas feiras, criou sorvetes originais feitos à moda italiana, porém com sabor de frutas tropicais”.
Diante de tanta variedade, fiquei completamente indeciso. A princípio, descartei tudo aquilo que me era conhecido e, como sempre faço, me concentrei no que era típico da região, como umbu, graviola, cajá, cupuaçu, pinha, mangaba… Ainda assim, não dava pra colocar tantas bolas de sorvete num simples potinho ou casquinha.
Um daqueles sabores era certo – MANGABA – na medida em que a maior parte das pessoas, no pouco tempo em que estive ali, pediu justamente o sorvete desse fruto da mangabeira, árvore rústica que pode chegar a dez metros de altura e é típica do bioma Caatinga, muito apreciada no Nordeste. Depois de, na cara de pau, pedir a provinha de todos esse sabores exóticos, montei meu copinho e, de quebra, ainda dei umas experimentadas na casquinha da mulher…
No dia seguinte, lá fui eu pra uma nova orgia gastronômica, cheia de quitutes baianos. A convite de Daiana Ramos (@daiana.ramos.355), cozinheira incrível e também participante do Jogo de Panelas, me dirigi à Casa de Cultura Idará (R. Santa Isabel, 7 – Pelourinho, Salvador – BA, 40026-410), um pequeno cantinho de arte e cultura, encravado no Pelourinho. Vale a visita!
Lá fui agraciado com um almoço dos deuses, preparado por essa minha amiga querida: acarajé, fritada, feijão fradinho, xinxin de frango, vatapá, abará, dadinho de tapioca, bolinho de estudante…
Cheguei justamente no momento em que ela estava aerando a massa do ACARAJÉ para fritar. Foi o prato que ela serviu de entrada no jantar de sua participação no programa, e que faz sem igual!
Ah, e ela ainda fez o ABARÁ, usando a mesma massa do acarajé e incorporando alguns outros ingredientes, que foi cozido em banho-maria embrulhado em folha de bananeira. E o melhor de tudo: ela me ensinou a dobrar a folha de bananeira!!!
Foi uma tarde inesquecível! Um mergulho na cultura e na tradição da Bahia como só alguém que realmente entende do assunto é capaz de transmitir… Fiquei pensando: quem sabe eu ainda consiga viabilizar uma forma de trazer Daiana e Ranieri para que, juntos, façam um workshop sobre comida baiana. Garanto: ia ser o máximo!
Ainda na capital Salvador, antes de partir para novos sabores, experimentei mais um pouquinho de nordeste: um camarãozinho básico e um prato com queijo coalho, carne de sol e macaxeira. Se já abriu o apetite de vocês, imagina o que ainda me esperava durante a viagem…
Parti, então, para a Ilha de Tinharé, na Costa do Dendê, mais especificamente para a Gamboa do Morro de São Paulo, conhecida região turística da Bahia, muito apreciada por suas belezas naturais. Pra começar essa nova etapa da viagem, nada melhor do que experimentar uma iguaria típica, muito consumida, envolta em superstições acerca de seus (supostos) poderes afrodisíacos. Sim, sim, estou falando da famosa LAMBRETA, também conhecida como Amêijoa em Portugal, e que é um molusco típico do mangue, encontrada em apenas três estados do Brasil.
E o preparo é facílimo! Depois de garantir que o produto está (muuuitoooo) fresco, basta lavar as lambretas em água corrente com uma escovinha, colocá-las numa panela, acrescentar cebola, tomate, coentro, pimenta e acender o fogo. Não precisa colocar água. Aliás, ela, ao se abrir, irá soltar toda a água necessária, que resultará no famoso – esse sim! – caldo milagroso da lambreta…
Como não poderia faltar nesse meu tour pela culinária regional, abri meus trabalhos com o tema MOQUECA BAIANA – aqui vale a ressalva pra dizer que, em algum artigo futuro, falarei acerca da também conhecida Moqueca Capixaba, seus detalhes e diferenças – e, para tanto, escolhi uma de camarão, acompanhada de arroz branco, pirão e farofa de dendê. Posso dizer que foi uma bela escolha de prato pra começar…
O café da manhã típico não pode deixar de ter um cuscuz bem quentinho, herança da cozinha norte-africana, trazido para o Brasil pelos colonizadores portugueses, feito com farinha de milho em flocos umedecida e cozida no vapor. Eu prefiro, em vez de umedecer com leite de coco, acrescentar – com generosidade! – manteiga por cima pra derreter. Macaxeira cozida também vai muito bem, acompanhado de um delicioso suco de mangaba, cupuaçu ou graviola e uma bela xícara de café! Estamos prontos pra um novo dia…
Quando viajo, procuro sempre o que há de mais típico e, nessa pegada, como um carrapato sedento de conhecimento, arrumo sempre uma brecha para entrar nas cozinhas e acompanhar todo o andamento de cada preparo.
Em Garapuá, preparado por nativo, experimentei um ensopado com os peixes cabeçuda, cambuba e carapitanga, um camarão na frigideira, banana da terra e – o mais surpreendente e delicioso! – uma moqueca de baiacu, peixe venenoso, que exige extremo cuidado no preparo, já que a Tetrodotoxina é uma neurotoxina 1.200 vezes mais mortal do que o cianeto! Mas, apesar do risco, o sabor é incrível, bastando apenas ter a confiança na pessoa que prepara…
De sobremesa, uma cocadinha bem pedaçuda…
Num outro dia – sim, esse artigo não possui precisão temporal, apenas e tão somente gustativa! – o almoço foi preparado na Gamboa e novos ingredientes foram introduzidos nessa minha coleção de sabores: moqueca de catado de aratu, feijão com legumes, carne de sol, manta defumada, farofa e uma saladinha… Pra quem não sabe, ARATU, segundo a Wikipédia, “é um termo utilizado para se referir a diversos caranguejos da família Sesarmidae mas costuma remeter mais especificamente ao Aratus pisonii, de carapaça quadrada e acinzentada, capaz de subir com habilidade nas árvores do mangue, onde se alimenta e se acasala”.
Nessas minhas andanças por terras baianas, eu não podia deixar de experimentar o caldinho de SURURU, também bastante consumido, feito a base de leite de coco e dendê. Trata-se um molusco bivalve – isto é, seu corpo mole fica protegido por duas conchas que se fecham – e filtrador, típico no Nordeste. E pra arrematar a experiência, um delicioso e gelado suco feito com a polpa do cacau…
Foram dias bastante intensos, procurando descobrir – e experimentar – a maior quantidade possível das iguarias típicas da diversificada culinária da Bahia, estado tão peculiar, de traços tão característicos e bem definidos.
A culinária baiana tem forte influência das culturas africana, com seus temperos fortes, especialmente o azeite de dendê e as pimentas; portuguesa, com o manuseio de utensílios (fogões e panelas) e a utilização de açúcar; e, em menor escala, indígena, com a utilização principalmente de frutas, plantas e peixes locais. Além disso, tendo em vista que os escravos não registravam em textos sua tradição, foi certamente por conta da forte associação entre culinária e religião – muitos dos pratos que vimos até agora são oferendas aos orixás – que as receitas conseguiram atravessar tantas gerações, chegando intactas (e igualmente saborosas) até nossos dias.
E pra finalizar, nada melhor do que abocanhar, com vontade, um ACARAJÉ completinho, com vatapá, caruru, camarão seco, vinagrete e muuuiiitaaaa pimenta, prato este que é símbolo da Bahia – tanto assim que a baiana do acarajé, em 2005, foi considerada patrimônio cultural do Brasil, através do IPHAN.
NHAAAACCCCC!!!!…
E assim termina nossa viagem. No início dela, me propus fazer uma jornada de aprendizado pelos sabores da Bahia e creio ter atingido o objetivo. Não apenas experimentei os pratos, como invadi cozinhas e atormentei os cozinheiros atrás das receitas e modos de preparo e, dessa forma, pude traçar, ainda que de forma resumida, um panorama dessa culinária de temperos fortes, autêntica e de grande diversidade.
Esse nosso Brasil, de proporções continentais, é repleto de sabor. Cada região do país é composta por vários estados e cada um deles possui seus pratos típicos, preparados de acordo com antigas tradições e que são passadas através das gerações. Por exemplo, no sul, temos o churrasco, arroz de carreteiro, o chimarrão, o barreado; no sudeste, temos a moqueca capixaba, o tutu de feijão, a galinha ao molho pardo, a feijoada; no centro-oeste, vamos de caldo de piranha, de frango com guariroba, de pacu frito; e na região norte, pato no tucupi, tacacá, caldeirada de tucunaré…
É muita coisa!!! Muitas ainda serão as viagens e um sem-número de pratos para degustar…
Fiquei extremamente animado com essa experiência. Gostariam de me acompanhar em uma próxima parada?
Em tempo: Gostaria de deixar registrado aqui meus agradecimentos ao amigo (e baiano) Rafa Gordilho pelas dicas incríveis – pena que não consegui, por absoluta falta de tempo, correr atrás de todas elas, o que certamente garantirá, em breve, uma nova visita complementar…
E, inspirado na viagem e na história do prato – afinal, era o preferido do grande escritor Jorge Amado, resolvi fazer um ARROZ DE HAUÇÁ. Deixo as fotos dessa minha experiência, pra que imaginem o sabor e o aroma – infelizmente, a internet ainda não me permite compartilhar esses dois sentidos…
DEL SCHIMMELPFENG
Simplesmente passado com essa matéria tão rica é tão bem explicada. Parabéns Del Lemos m, a tempos não viajo por minha terra , como fiz agora . Me sentindo lisonjeado com Baiano é como Nordestino que sou. Sem mais palavras , apenas os meus de .
Volte logo pq ainda tenho alguma coisas para lhe mostrar!!!
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