O deserto que conheci – imaginário literário ou sentimento profundo?

Eu fui ao Marrocos no ano passado com uma curiosidade imensa sobre o deserto. Eu queria ver o deserto. Não qualquer um: os arredores do Saara, as aldeias, as tendas, os cenários que eu tinha inteiramente construídos na minha imaginação. Não pude, ainda, pisar a areia do Saara; só estive num pré-deserto, onde há aquela areia mais dura, misturada a alguns cascalhos. Mas passei por aldeias, vi a areia levantada pelo vento e pela roda dos carros 4×4 e ouvi o silêncio; o pesado e forte silêncio do nada.

A capa do livro “herdado” da minha avó com minha assinatura de criança!

A primeira vez que ouvi falar do deserto e tentei imaginá-lo em sua amplitude foi quando, criança, li “O Pequeno Príncipe”. Disseram para mim que não era bem um livro para crianças mas insisti na leitura da obra mais famosa de Antoine de Saint-Exupéry e tomei para mim o livro da minha avó, assinando meu nome sobre sua capa. Preciso confessar que as aquarelas do autor foram o que primeiro me chamou a atenção, além da silhueta curiosa do menino loiro que estampava a capa da edição. Um livro para adultos que possui gravuras (e em aquarela!) é um fato curioso por si só para uma criança.

[Nota do editor: aquarelas estas feitas pelo próprio autor]

O encontro desse menino com o aviador que narra a história do livro me tragou, com as personagens inusitadas, com a liberdade daquela criança que viajou entre planetas, através das estrelas e pelas coisas bonitas que havia na relação entre os dois. Eu ainda estava aquém de alguns pensamentos mais profundos que o livro traz, que, disfarçados de banalidade e de pureza infantil, espelhavam uma intensa reflexão humana sobre a vida. Ou diante da morte pois, para mim, o livro é uma parábola do homem diante da morte (mas isso é tema para um outro ensaio, não convém aprofundar aqui).

Interessante dizer que a chegada do príncipezinho à Terra, a sua relação com o narrador e a sua partida ocorreram no deserto, o que construiu em mim a primeira ideia de deserto.

Criança ainda, eu me lembrava do príncipe quando olhava as estrelas porque ele as apontara para mostrar o planeta em que morava. E eu sabia que as estrelas apareciam mais vivamente no deserto do que nas cidades. O deserto era, portanto, na minha imaginação, o local de onde se podia olhar para o infinito. A outra emoção muito forte que me ficara foi a saudade descrita no final do livro, quando o autor desenha uma paisagem de areia vazia com só uma estrela no alto. E termina assim sua narrativa:

“Esta é, para mim, a mais bela paisagem do mundo, e também a mais triste (…) Foi aqui que o principezinho apareceu na terra, e desapareceu depois. Olhem atentamente esta paisagem para que estejam certos de reconhecê-la, se viajarem um dia na África, através do deserto (…) Se então um menino vem ao encontro de vocês (…) adivinharão quem é. Então, por favor, não me deixem tão triste: escrevam-me depressa que ele voltou…”

O deserto. A mais bela paisagem. Lá onde pode ver-se o infinito. Um grande coração onde pulsa uma saudade. Onde um homem aprendeu com uma criança o sentido das coisas que há na vida. O deserto era, na minha imaginação, o máximo.

Alguns anos depois, adolescente, li “Terra dos Homens”, também de Exupéry, um livro em que se contam histórias reais vividas por ele e por seus companheiros, pioneiros aviadores que sobrevoavam o Saara e os Andes, a serviço do correio aéreo da Europa. Várias dessas histórias se passam no deserto: algumas de pouso planejado, outras de pouso forçado. Quando encontrei “Terra dos Homens”, apaixonei-me pelo lado humano real dessas histórias e reconheci em várias passagens, algumas das ideias ventiladas em “O Pequeno Príncipe”. Isso me levou a reler o livro da minha infância, com as antenas todas ligadas e a maturidade apurada por quem sabia, que por trás daqueles sentimentos e da filosofia de seus personagens, havia experiências verdadeiramente reais e tocantes que os inspiraram.

As histórias de Mermoz, de Guillaumet, do acidente de Exupéry e da libertação do escravo Bark são maravilhosas, cheias do que é frágil e poderoso na nossa humanidade, relativizam as referências que temos na vida, com que pautamos nossas escolhas e nossos relacionamentos, e questionam o que nos é importante de fato. E quase todas acontecem no coração do deserto do Saara.

“Terra dos Homens” consolidou, portanto, a minha ideia do deserto. As aldeias, os homens que caminhavam sobre as areias, os beduínos, as relações de hierarquia, a solidão dos homens, a terra infinita que subvertia o poder do homem e o diminuía sob o Universo e, paradoxalmente, que lhe exigia a força máxima, a superação instintiva e inesperada diante dos abismos.

Substituí a interpretação infantil de que o deserto deveria ser “o máximo” pela ideia de que, sob seu aparente vazio, sob sua aparente infinitude, sob suas dunas e lançada contra suas miragens, esconde-se sua selvageria. Que contra sua força natural, os homens criam histórias inimagináveis: umas de ignorância, outras de bravura. O deserto exige dos homens, em algum momento de suas relações, a sua própria essência, seja ela corajosa ou covarde, dura ou piedosa. O deserto lhes exige que arranquem do coração os significados das suas relações com a vida e com o mundo.

De novo, era Exupéry e, mais amplamente, era a literatura que traduzia em mim a semântica dos substantivos que, concretamente, desconhecia.

Eu vira imagens do deserto. No cinema ou na TV, vira tempestades de areia, caminhadas sob o sol ardente, oásis, miragens, poços, caravanas, camelos etc. Mas foram as emoções que a literatura me permitiu construir que impregnaram todas essas imagens com sentimento e significado. Foi o que me permitiu adivinhar, por exemplo, o quanto o coração de um homem perdido pesava em angústia e determinação; o quanto de aridez o vento e a areia deixava sobre sua pele; o quanto aquela imensidão o reduzia em resistência e, paradoxalmente, aplacava seu desespero ao aumentar-lhe a força para seguir sempre, sempre, sempre em frente; o quanto de esperança brota num coração que se depara com miragens e o tanto que essas roubam dele quando somem no ar.

As diversas formas de arte são formas de experimentação sensorial intensa, se deixarmos levar-nos. E a literatura atinge camadas muito profundas da nossa percepção quando um texto consegue uma conexão emocional com seu leitor. Mais do que contar uma história ou simples prazer de brincar com palavras ou com sons, a literatura cria imagens na nossa mente, cria sentidos amplos para as palavras, que não estão nos dicionários mas nos nossos corações, porque não têm uma origem morfológica mas, sim, emocional.

Eu fui ao Marrocos com uma curiosidade imensa sobre o deserto. Eu queria ver o deserto. Não qualquer um: aquele que existia em mim, na minha lembrança, na minha emoção. Eu vi e amei o deserto do Marrocos. Mas lá era um outro lugar. Porque aquele deserto que carreguei comigo, só existe em mim, no meu olhar, nas lacunas emocionais que as histórias de um escritor francês preencheram e que enfeitei de significados meus. Por isso, diante do quadro de areia, sol e vento, esmagada pelo silêncio daquelas paisagens, senti-me repleta e agradecida por ainda poder deslumbrar-me e por poder emprestar àquela hora uma emoção que havia sido cultivada em mim, há muito tempo, pela literatura.

ANA GOSLING

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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