Sobre tecnologia

Coluna de Márcio Calixto

Sobre Tecnologia. Ilustração ArteCult/ChatGPT

Sobre tecnologia

 

Durante muito tempo fui resistente à tecnologia. Por ser um leitor com alguma constância, por que querer algo além do livro? Ele é perfeito, em sua maravilha informacional, nada a superar. Mas, depois de ser pai, é impossível não se render às invencionices contemporâneas. Não digo nem só sobreo telefone celular, essa praga destrutiva de relacionamentos  ou  o computador, como já o acessamos há tempos e dele também não conseguimos fugir. Falo principalmente das formas mais contemporâneas como Kindle, Alexa, câmeras, interruptores inteligentes e mais uma parafernália que hoje facilita absurdamente a nossa vida.

Há algum tempo as crianças pediam. Elas porque vivem esse mundo. Meu filho mesmo desenha pelo tablet. O que ele faz é uma maravilha. Há no aparelho uma infinidade de tipos de lápis, caneta, cores, eu fico profundamente impressionado com o que ele consegue em seus 7 anos de idade. Eu não tinha esse conhecimento em sua idade. Os meus amigos mais íntimos sabem que primeiro eu também fui do desenho. Tal qual Arthurzinho, eu também passava o dia inteiro desenhando. Meus recursos eram limitados. Algumas folhas, um lápis ou outro e caneta Bic. Durante muito tempo pensei em ser um artista do desenho especializado na caneta Bic. Com o tempo, passei a escrever e aqui me encontrei. Afirmo que nas palavras eu tenho todas as cores do azul. Vejo de novo meu filho. Ele persiste no desenho.

Depois de três dias de instalação, técnicos de várias naturezas e uniformes passaram lá em casa, hoje ela está toda conectada a um aparelhinho redondo com nome feminino. Sua voz é agradável e mansa. Escuta a todos com ternura e encontro. Deveria mesmo se chamar Amélia. Penso que faltou sensibilidade do dono da empresa que a criou. Ele que já é dono da Amazon, faltou pesquisar mais sobre o Brasil. Por ora, a gente aceita chamá-la de Alexa mesmo. Em sua docilidade mecânica, ela liga e desliga luzes, ar condicionado, um ventilador de teto, televisão. Eu, um gordo em expansão, nem mais preciso me levantar de minha poltrona – que treme ritmicamente para quase nada. Só para pegar comida preciso me levantar. Bem, não vejo a hora em que criarão um drone só para isso. Espero que algum inventor leia essa minha crônica e possa me presentear com um drone que me sirva misto-quente com Coca-cola. Aquela Coca-cola geladinha. Perfeita. Já tem um estoque em minha geladeira duplex.

Minha mulher, empolgada, pede para que se instalem câmeras em quase todos os cômodos. Reluto sobre os banheiros. Devemos resguardar alguma privacidade. Mínima que seja. Ela leva um tempo pensando. O que motiva querer câmeras no banheiro? Reluta um pouco, aceita no final. Instalamos. Quando saímos, parece ter saudade da casa. Reclama do gato no sofá. Grita com ele online. O bicho se desespera. De onde vem tanta voz? Penso que ele comece a duvidar da própria mediunidade. Sabemos que gatos têm bluetooth com o além. Logo logo o nosso passa a ser ateísta ao descobrir as câmeras.

O problema é que essa coisa de tecnologia vicia. Agora me vejo abrindo aplicativo da Alexa para ver o que está ligado. As câmeras só mostram as ausências de todos em casa. Filha em sua escola. Filho em outro. Eu no trabalho. A mulher também. As câmeras trabalham para o nada. O meu nada. Olho para o Kindle na mochila. Desempregado.

Pego o livro que lia. O marcador de páginas, feito de cartolina, parecia saudoso. Vejo também o caderninho. Resolvo, então, escrever uma crônica. Será que a Alexa a digita para mim?

 

MÁRCIO CALIXTO
Professor e Escritor

Márcio Calixto. Foto: Divulgação.



Coluna de Márcio Calixto

 

Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de 3 filhos, convicto carioca suburbano bibliófilo residente em Jacarepaguá. Um subúrbio de samba, blues e Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.