Sobre meu retorno à fé

Coluna de Márcio Calixto

 

Relutei muito em escrever esse texto. Como algo pessoal, deveria mantê-lo assim. Penso sempre que questões profundamente pessoais não deveriam ser alvo de uma crônica. Porém, escrever crônica sempre foi escrever o que era crônico. Por isso, resolvi comungar das palavras à exposição do meu retorno à fé.

 Ao longo dos anos tornei-me profundamente ateísta. Com o volume de livros lidos, depois de Beckett, os estoicos, como Sêneca, e das próprias obras religiosas, vi como a religião é só mais um produto da mente humana. Tornei-me cético, avaliativo burocrático e  desafeito de tudo que viesse de ordem profundamente emocional. Em minha verve de professor, passei a colocar isso como material primordial de meu currículo oculto, aquilo que vem da Liberdade de Cátedra, de tudo aquilo que devemos entregar em sala. Ao ver como as religiões de matriz europeia fundamentam uma idiossincrasia de realidade e incapacidade cognitiva em toda a sociedade, passei a expor, pelas entrelinhas como este ponto deveria ser desmedido e minado. Essa incapacidade intelectual fica mais evidente em escolas públicas, em que os alunos parecem blindados. Por serem tão jovens, não percebem como são micos amestrados do descaso e do ódio. Somado à realidade tão missiva e pesarosa, esse ódio se torna a única forma de viver. Na religião, encontram aquele subterfúgio de falso acalento. Quebrar tal ponto não se dará por micropolítica. Tem de ser dever do estado. No entanto, o próprio estado, loteado entre esquizofrênicos e canalhas psicóticos, só coloca, no fim, um alvo em minhas costas. Dou minhas aulas preocupando me em fazer pensar, esperando que essa semente encontre solo fértil um dia.

Meu caminho ao ateísmo tem solo forte, chão sedimentado. Rigidez. Porém, esse ceticismo, com o tempo dá forma em perspicácias argumentativas, mas embrutece. Dá passos à solidão mais profunda. Com o fim do meu segundo casamento, passei a amar a solidão. Só quebrava vez ou outra com a presença de meus filhos, foi assim por algum tempo até realmente conhecer Juliana. Entretanto, nosso relacionamento teve idas e vindas. Hoje, também tem base sedimentar. Alvo para outra crônica. Diga-se de passagem, algo que deve entrar no contexto aqui exposto, ela própria me perguntou se ainda continuo ateísta depois de todo o processo de retorno à fé que tenho me imposto. Fui categórico: sim. Não titubeei. Isso, de certa forma, a feriu. Ela é religiosa espiritualista, como preferiu se afirmar. Eu passei a concordar com ela.

Preciso me explicar. Depois de tudo que escrevi, o título ganha ares de incoerência. Porém, se o ódio era o melhor de Drummond (e de meus alunos presos no escravismo religioso ímpar), o meu desejo de conhecimento era clínico e construído na experiência, e isso me fez caminhar por essas novas trilhas. Hoje, no banho, antes de seguir ao trabalho e a essa crônica, fiquei pensando na religião que tenho decidido seguir. Peguei me imaginando em um podcast, explicando por que voltei à religião depois de todo ateísmo. Acredito que aqui muitos façam do banho esse dualismo de vida. Se no sonho nos rendemos, no banho há outras entregas.

Nesse podcast explico a escravidão perpetrada pelo ateísmo. No barco, atracado no Rio Letes, meu barco não conseguia navegar. Lendo livros imensos, de páginas impressas de uma tinta profundamente negra, lia a afeição do absurdo humano. Em nossa exímia lucidez, na banalidade absurda da vida. E a vida é só isso mesmo. Ponto. Depois de tudo, mesmo síbilo de Caronte, moedas no bolso, fui deitando nesse barco. De vez em quando, me portava um filho, alguns amores e nada mais. Da embriaguez bacante dos instintos, o resoluto retornava.

Percebi que a minha solidão passava a cobrar preços maiores. Passei a fumar mais, a ler mais, A ver filme compulsivamente. Não consegui escrever. Era uma angústia à palavra, ao computador, não saia nada de substancial. Inclusive, as ideias para a escrita periciam-me com facilidade. Descartavá-as. Minha práxis de escrever uma página por dia e ler 10 não se firmava. O trabalho era burocratizado. Faltava-me a paixão. Aos poucos, minha solidão e meu ateísmo foram me deixando oco. Havia emoção quando eu estava com meus filhos. Com alguma mulher. Ponto. Mais nada. Fui me afundando no sofá, no celular, no charuto e no uísque. Sabia que o caminho era pérfido. Lembrava sempre de um texto, uma crônica, de João Ubaldo Ribeiro, que ele escreveu para o Globo afirmando que passou a se preocupar quando pensava em beber logo que acordava. Ainda não tinha chegado nesse estágio. Ainda.

Havia uma forma de religião que eu ainda não tinha experimentado: a Brasileira. Acho que surgiram em especial da evolução dos modos dos povos originários. Conhecia sobre as religiões amazônicas, principalmente as que usam uma bebida chamada de ayahuasca. O termo é de origem Quéchua e há um conhecimento muito sofisticado de química em seu processo de produção. Sabe-se que é no mínimo milenar todo o conhecimento por trás da bebida. Tive a primeira oportunidade em setembro de 2023. O que me movia era a curiosidade. Antes eu tinha visto o documentário sobre a ayahuasca. Segui pelos estudos – positivíssimos – Sobre o chá. O que me aconteceu depois de beber, me fez desejar retornar à prática de uma religião. Desta vez, profundamente intimista e apegada à religião em sua essência. Era o que buscava. Surpreendeu-me seu sincretismo tão plural e contundente. O chá me fez retornar a Deus, ou melhor, a GADU. Absorvi o laroyê e o ahô para os agradecimentos. Se naquela solidão absorta ao lado de Caronte, coloquei um Lampião na ponta do barco. Haverei de escrever mais sobre tal. Oportunidade para outra crônica.

 

MÁRCIO CALIXTO
Professor e Escritor

Márcio Calixto. Foto: Divulgação.



Coluna de Márcio Calixto

 

Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de 3 filhos, convicto carioca suburbano bibliófilo residente em Jacarepaguá. Um subúrbio de samba, blues e Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.

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